DA DOAÇÃO LITERÁRIA (AO ÁLAMO)



é inevitável que aquele que trabalha com letras se encontre rodeado delas. letras próprias e letras dos outros. letras que serviram de inspiração, como fontes de onde se beberam ideias e pensamentos, estratégias literárias e novidades, e letras que serviram de exemplo, como bandeiras vermelhas

(avisos, no fundo, cartões levantados a meio do jogo
e alertas daquilo que não se deve fazer ou imitar. são também letras que foram sendo oferecidas nas mais diversas ocasiões, e amontoadas, lado a lado com revistas e outras minudências quotidianas, sendo também lentamente reorganizadas na prioridade das leituras a fazer.

é também inevitável que não só não seja possível àquele que trabalha com letras ler todas as letras que gostaria de conseguir ler, como também não é possível que viva o tempo suficiente para, eventualmente e nos tempos ociosos de pausa entre o labor das letras, se dedique à leitura das letras que lhe foram sendo oferecidas e dedicadas ao longo da sua vida literária. essas nem sempre se querem ler.

o número 2 do glacial – página de literatura e pensamento dedica algumas palavras à generosa oferta que o então jovem poeta pedro da silveira fez da sua biblioteca particular, que contava mais de três mil títulos, à biblioteca pública de angra do heroísmo. é carlos faria quem toma a pena e declara que a uma doação deste tipo

“... chamamos nós uma doação de Sangue: Espírito e Vida! Sobretudo quando se dá a uma Biblioteca pública, para uso público, toda uma propriedade moral e dignificante, como é a posse de livros de Arte e Cultura!
E fazer esta doação quando se é jovem, lúcido e Poeta de 1ª fila, como no caso de Pedro da Silveira, mostra-se bem a virilidade dessa juventude, a nobreza humana dessa lucidês [sic], a pureza desse vanguardismo!”


e de facto o é. quer o seja em tenra idade quer seja em provecto outono da vida, o certo é que a doação literária se torna, por uma razão e muitas outras, um acontecimento de louvar e de enaltecer porquanto visceral e “de sangue” se tratando.
em primeiro lugar, porque quem trabalha com letras ama o seu trabalho – e desfazer-se de uma biblioteca pessoal de letras quando em vida é um acto de altruísmo dado a poucos verdadeiros amantes abnegados das letras. a posse é uma vestimenta difícil de despir.

em segundo lugar porque as letras estão sempre à volta. despir de letras a parede de um trabalhador das letras é pedir a um criativo que crie dentro de um cubo de puro branco. é desmotivador. conseguir despir a vestimenta da circunstância literária é obra.

em terceiro lugar, ou não tanto em terceiro ou quarto, mas noutra dimensão que não as primeiras, a doação literária pressupõe um amor ao conhecimento e à partilha desse mesmo conhecimento que vai para lá de uma vida inteira de vivências. é sabido que somos a súmula do que absorvemos, que somos uma esponja

(eu tenho um coração de esponja
que cresce com a tristeza

muito parecida com aquela metáfora do coração e da tristeza da cantora capicua, que tão bem descreve este metabolismo, e que acabamos por ser, ao fim e ao cabo, o que vemos, lemos, ouvimos, experienciamos e sonhamos.

a biblioteca privada de um trabalhador das letras é esse caminho percorrido. sem frisos cronológicos nem datas estanques, mas com anotações, dedicatórias, ofertas e escritos escondidos que tornam a estrada do poeta mais visível, quiçá, do que a névoa de descodificação que sempre a envolve quando publicada.

quarenta e seis anos depois, em 2014, o também ainda vivo poeta álamo de oliveira doou a sua biblioteca privada, num total de cerca de seis mil livros, para servir de base à constituição da biblioteca álamo de oliveira, instalada na junta de freguesia do raminho, freguesia de onde é natural e onde teima em viver e escrever.

quase cinquenta anos distam entre ambos os actos. o segundo, apesar de mais fundacional porquanto pilar da edificação de uma biblioteca numa freguesia limítrofe e afastada da centralidade urbana de angra do heroímo, revela uma mesma semente e uma mesma intenção.

é certo que muitos dos herdeiros dos trabalhadores das letras acabam por doar, senão todas pelo menos parte, as bibliotecas particulares dos falecidos. ora por circunstância e importância sócio-cultural do trabalhador das letras ora por uma questão político-cultural. vai daí que a doação de uma biblioteca privada em vida é muito mais consciente e considerável.

continua carlos faria:

“Não nos surpreende que este gesto pois corresponde ao Homem e ao Poeta que há em Pedro da Silveira! Até porque está com o nosso sentido de arte o exemplo que o Poeta dá como Homem e que Homem deve dar como Poeta!

álamo de oliveira está, portanto, ao nível do sublime descrito por carlos faria ao considerar a doação literária de pedro da silveira. uma atitude que faz corresponder o ideal de poeta ao ideal de homem, ambos unos num só indivíduo, neste caso, poeta. uma espécie de ideal grego de perfeição ao qual se deve aspirar – no qual o acto revela a perfeita união entre a ação do cidadão e o ideal de perfeição do homem a que aspiram os poetas e os artistas. e que é, também, os poetas e os artistas a que aspiram os homens.

“Consideramos Pedro da Silveira o maior poeta açoriano vivo, poeta de uma linhagem humana e artística que pela mensagem social da sua obra se sucede a Antero! Com este reconhecimento desejamos dar a lume a concepção de poesia e arte que nos norteia dentro desta página de literatura e pensamento! E afirmarmos isto, equivale a dizer: está aberto o Diálogo!”

não podemos de forma alguma considerar algo mais acerca do volume de títulos oferecido senão a feliz coincidência do dobro observado. não correspondido, certo é, entre as idades de ambos os poetas aquando das suas respectivas doações.

(pedro doa com quarenta e cinco anos de idade

o certo é que quer a biblioteca pública e arquivo regional de angra do heroísmo – nome por que era conhecida então – quer

(álamo com sessenta e nove anos de idade

a junta de freguesia do raminho ficaram mais enriquecidas, mais completas nas suas missões e com espólios acessível a leitores, curiosos e estudiosos que de outra forma não o seria.

ao álamo de oliveira, que revela no seu acto o altruísmo dos homens das letras, ao semear em terreno de biscoito um raminho de amor à literatura, o nosso profundo reconhecimento. fê-lo em vida também, como pedro. consciente e lúcido e certo de que,

(como miguel torga tão bem descreveu

este seu acto é um trabalho contra o presente, é, no fundo, aquela vidência de uma seara futura, uma espécie de sementeira que, na terra negra da vida, e no pousio do desespero, age como a confiança e a crença no futuro.

ao álamo, que vê o seu nome fugir ao vaso do esquecimento, quebrando ainda mais uma barreira da eternidade do seu nome
(que já a sua obra o perpetuará

na forma de uma biblioteca que será o depósito dos livros que o rodearam como trabalhador de letras, o nosso sincero obrigado.

bem hajas.

26.03.2017
rogério sousa

Comentários

Mensagens populares