MMXXI.24 - AURIBUS TENEO LUPUM

 

na altura da sua indigitação como presidente do governo regional dos açores, josé manuel bolieiro avisou-nos de que este seria um governo verdadeiramente “transformista”. brinquei com a aparente gaffe do senhor, entendendo que pretenderia dizer “transformador” – no sentido das transformações que iria operar – e não “transformista”, na verdadeira acepção da palavra.

ao dizer que o governo era “transformista”, para lá do óbvio gozo inerente ao jogo de palavras com os transgénero ou transsexuais, assumi que o senhor não quereria dizer que o governo era como aqueles seres mitológicos que se transformavam noutros animais, de acordo com as suas vontades, ocasiões e necessidades imediatas, iludindo e enganando todos os que neles acreditavam.

infelizmente, eu estava enganado. bolieiro quis mesmo dizer que o governo tricéfalo era um governo “transformista” – um aparente carneirinho na oposição, mentindo com todos os dentes que tinha na boca, que se transformou num lobo assassino no poder, no já no meio do rebanho que nele acreditou, agora sem margem de manobra para desfazer o logro. 

garantia o bolieiro que o governo do partido socialista gastava muito dinheiro na sua estrutura e nas suas nomeações, mas veio dar à luz o maior governo de que há memória, no menor tempo decorrido, destruindo estruturas técnicas e chefias intermédias para poder nomear, a torto e a direito, bois e boias sem sequer se preocupar com pré-requisitos ou currículos – alguns têm literalmente uma frase apenas, e nessa frase atesta-se a inadequação ao cargo. garantia que o seu governo seria o mais transparente, mas acabou com a publicitação das decisões do conselho de governo e as audições à população nas visitas estatutárias, tornando a sua governação a mais opaca e a mais distante das pessoas de sempre, utilizando o gabinete de apoio à comunicação social como arma de propaganda partidária durante a campanha das autárquicas, tornando as agendas mobilizadoras no cavalo de tróia para a tomada de assalto das empresas micaelenses ao dinheiro do prr da europa.

berrava o lima, enquanto oposição, que a ilha terceira estava a perder visibilidade e a definhar perante o centralismo de ponta delgada, mas neste momento, como vice-presidente navegante das agitadas águas dos hotéis de ponta delgada, artur cala-se que nem um rato perante a contínua diminuição do número de voos no aeroporto das lajes; faz ouvidos moucos à extinção da delegação do centro de emprego na ilha terceira, deixando os desempregados e os empregadores sem apoio; e pavoneia-se a lançar bitaites na comunicação social contra o secretário da saúde, quando o secretário dos transportes termina com os encaminhamentos gratuitos para não residentes, reduzindo brutalmente a possibilidade de quem nos visita sair de são miguel e visitar outras ilhas. 

é caso para dizer que o gato comeu a língua do vice-presidente com pimenta do bife, transformando-o num mero passpartout que embeleza a foto de um governo transformista, de três lobos sedentos de poder com sobretudos de pele de carneiro, aos quais nem a mais criativa maquilhagem consegue disfarçar as feridas da escaramuça e o rasto de sangue das suas políticas. 

o rei-anão-do-corvo, que preferiu o lugar de deputado para se manter “livre e independente” na assembleia legislativa, é também um transformista convicto. onde antes se ouvia que o governo regional era centralista e não atendia às necessidades da ilha do corvo, agora ouve-se que o corvo terá tudo o que quiser desde que vote na coligação. onde antes berrava aqui d’el rei pelas nomeações políticas e pela injustiça da máquina partidária do partido socialista, agora pavoneia-se, de braço dado com a sua esposa directora do museu do corvo, mobilizando essenciais discussões para a sobrevivência cultural da ilha, plasmada na figura do boi-anão e nas promessas da educação, claramente isentas de interesses, porquanto a sua esposa era presidente do conselho executivo da escola que agora terá uma cantina.

mas o povo não se vendeu por um punhado de promessas apressadas na hora das eleições, pelo menos não o do corvo, e o rei-anão lá teve de admitir que nas autárquicas tiveram uma pesada derrota porquanto os corvinos não mudaram o sentido de voto, apesar do “enorme investimento do governo na ilha” (sic) e das promessas que o executivo adiantou, com pompa e circunstância, lado a lado com o passpartout e o transformista-mor, no ecrã da rtp-açores.

ao retrato de família junta-se agora o josé pacheco, deputado do chega-açores eleito com os votos da compensação pelo orlando lima, um grande homem de cultura (nas suas humildes palavras), que sabe dar uns toques de violão e gosta de cantar músicas religiosas no computador. é um homem sério e é um homem que sabe dar uns murros na mesa, de acordo com as suas mais recentes afirmações no congresso dos cheganos que o elegeu como vice-presidente do partido do andré ventura. em poucos anos foi do psd, do cds-pp e agora vice-presidente do chega. conhece, portanto, os partidos da coligação por dentro.

bolieiro garante que não cedeu e que o governo pouco negociou, pacheco garante que o governo cedeu “em toda a linha” nas exigências do seu partido-de-um-homem-só e que o governo vai ser remodelado, o acordo com o representante da república rasgado, um subsídio à natalidade criado, e a redução dos rsis efectivada. um deles mente, com todos os dentes tortos que tem na boca, enquanto o passpartout vem a público dizer que se assiste de facto a uma redução do rsis, como o senhor deputado josé pacheco havia dito.

um governo transformista, a caminho da tetracefalia, guiado por um invertebrado contorcionista, suportado por um representante da república que interpreta resultados eleitorais sem legitimidade democrática, uma comunicação social dependente dos apoios governamentais para sobreviver, um punhado de interesseiros que se esfalfam para fazer sentido desta manta de retalhos, um povo que é guiado pelas redes sociais – nas quais não há polígrafos sic que nos valham – e um desalento, infelizmente compreensível, por um anterior governo que se acomodou, arrogantizou e se distanciou das pessoas, fazendo com que as pessoas sintam que o “agora” está pior do que o “antes”, mas que os outros estiveram 24 anos no poder e estes ainda têm tempo para provar ao que vão.

que é como quem diz, depois de o lobo estar no meio das ovelhas, vai comendo umas quantas, enquanto o rebanho for dando para o manter saciado. sempre se vão safando do caçador – esse sim, era mau porque protegia do lobo em troca de uma verdade que não se quer conhecer.

“auribus teneo lupum” é um provérbio latino que significa, em tradução livre, “segurar um lobo pelas suas orelhas” e transmite a ideia de encontrarmos um problema para o qual ainda não há solução, mas que é, em si próprio, uma encruzilhada. para qualquer lado que se decida, trará sempre novas dificuldades. 

uma coisa é certa, depois de o segurarmos pelas orelhas, há que decidir. aguentá-lo assim para sempre é impossível.

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