MMXXII.23 - O SOM DO SILÊNCIO

 


olá escuridão, minha velha amiga, venho falar contigo de novo. aqui me confesso, humano, falível e despido de preconceitos. de tabula rasa aqui me apresento, para conversar contigo e para desabafar. para, acima de tudo, vazar esta angústia silenciosa que me aperta a garganta e enche os ouvidos, porque o silêncio que me rodeia é demasiado audível para ser ignorado. 

 

venho dizer-te que numa destas noites sonhei que caminhava sozinho, por entre ruas e passeios de calçada molhada de uma qualquer cidade onírica, iluminados pela luz ténue da lua que teimava em surgir, por entre as pesadas e escuras nuvens da noite que teimavam em cerrar o céu.

 

sonhei que via, à medida que passava pelas vitrines das lojas fechadas, nos ecrãs dos televisores em exposição, imagens de multidões de pessoas agitadas, homens e mulheres a galgar barreiras policiais, a construir barricadas artesanais, de armas em punho e segurando paus nas mãos, aparentando gritar palavras de ordem.

 

o som da televisão – se o há – era abafado pelos vidros das vitrines.

 

caras torcidas, bandeiras em riste, gritos e cânticos que se percebem na sincronia dos lábios das caras enraivecidas plasmadas nos ecrãs. faces incendiárias e rostos incendiados, segundo paul simon seriam pelo menos dez mil, talvez até mais. não sei. não as contei. 

 

mas eram muitas. eram muitas as pessoas que falavam sem conversar; muitas as pessoas que ouviam sem escutar; e muitas as pessoas que escreviam canções que nunca alguém cantará, diz simon. eram mais de dez mil pessoas, segundo o cantautor. de novo, não sei.

 

não as vislumbrei todas, mas segui-as, pelas ruas e passeios de calçada molhada pela morrinha da noite de luar fraco e intermitente. 

 

sonhei que essas pessoas seguiam outras pessoas que seguiam, por sua vez, umas quantas mais pessoas, numa estranha cadeia de desunião humana, caótica e violenta, movida pelo ódio e pelo desespero, pela inimizade e pela luta pessoal, ao invés da adversidade e da luta dos ideais, raiva pura plasmada em grito de revolta expresso nas ruas e nas calçadas de pedra molhadas.

 

sonhei que se viam países divididos, extremados entre dois pólos, nos quais se urde um sentimento antagónico e combativo que não deixa margem de manobra para a concertação nem para o diálogo. 

 

um estado de coisas em que o “nós” e o “eles” é definido ao sabor dos impropérios e das acusações ocas – vazias palavras de arremesso que em nada acrescentam à vida de quem as grita nem de quem as ouve.

 

e o poeta tenta alertar a multidão para a loucura que a acomete. fala para as pessoas que seguem pessoas que seguem outras pessoas e grita. berra que o silêncio é como um cancro, diz-lhes que o cancro cresce, e que se alastra, e que tudo consome pela consequência da sua inacção. 

 

resta-nos combater o silêncio que impede a crítica, a concertação, o diálogo, o entendimento, se quisermos. uma miríade de sinónimos e alternativas à ideia de que se perdeu alguma coisa no acto de conceder. ou de ceder. ou do “com” “ceder”, no sentido de algo que se faz com alguém e não contra alguém. resta-nos rasgar a parede silenciosa e estilhaçar esta paz podre que político-correctamente nos confunde e atira para o imobilismo.

 

mas as palavras do poeta caem no chão como pingos de chuva que ecoam silenciosos nos poços do esquecimento, enquanto as pessoas – mais de dez mil, assegura-me o paul – se curvam e rezam para o(s) novo(s) deus(es) que construíram. 

 

deuses de néon – brilhantes e fátuos tubos de vidro coloridos que substituem a imagética da divindade pelo plástico do quotidiano.

 

e essa imagética grita que as palavras dos profetas estão escritas nas paredes sujas das linhas de metro e dos bairros sociais. que é como quem diz que a resposta que procuramos está mais próxima das palavras do povo do que das promessas dos governantes, e que o silêncio instalado é sinónimo de conivência, de passiva concordância ou, quiçá, de uma espécie de fechar os olhos ao diabo por falta de vontade de discutir. 

 

o silêncio é também muitas vezes a face inaudível da discordância; o bico que torce o prego em direcção ao contrário desejado, fazendo com que o motivo da discordância surja ainda mais identificado e assumido. o silêncio é também, e muitas vezes, a face visível do desacordo, invisível porquanto não tangível, mas visível por extensão do seu efeito.

 

mas para muitos, o silêncio é tão somente a expressão do vazio do seu pensamento e a face visível da plasticidade das suas espinhas dorsais. 

 

vós, que vociferastes contra os erros do passado, batendo no peito a sinceridade dos vossos propósitos e a honestidade das vossas promessas; vós, que bradastes aos céus a vossa transparência e idoneidade, prometendo ventos inexoráveis de mudança; vede o resultado das vossas ocas palavras na inacção das vossas propostas e tende vergonha, falando.

 

vós, que dissestes que desta água nunca beberíeis, cuspindo sem dó nem piedade para o céu que agora esperam não vos cair em cima da cabeça; vós, que haveis declarado algumas coisas e o seu exacto contrário sem o rubor natural do embaraço nas faces, a que o homem honesto em geral é tão atreito, tende a vergonha alheia, dado que a própria não a tendes, e rompei com este pacto de silêncio, falando.

 

vós, que clamáveis por algo que agora não sois capaz de fazer, tende, por favor, vergonha do vazio da vossa acção e do repouso da vossa voz, em troca de dez réis de mel coado e uma efémera sensação de poder, e rompei o silêncio, falando.

 

caso contrário,

apenas vos resta abraçar o som do silêncio e assumir a derrota.

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