MMXXI.19 - PARA LETÍCIA

 


o eterno devir da rotação da terra não é complacente com a tua partida. não há pausas para descanso nem interrupções para contemplação. tudo vem e tudo vai, do nascer ao cair do sol do lado de cá, ao nascer e cair do sol do lado de lá. para além destes elementos que nos compõem, pouco mais somos do que etéreas lembranças e espírito, fugazes passagens por esta crosta terrestre na qual insistimos em plantar os nossos pés e chamar de casa. 

somos o indizível, o intangível, o que fica do que parte. somos os momentos plantados nos corações dos que tocámos e os sorrisos regados com as lágrimas das memórias dos que ficam. sublimes imagens de um passado que não se repete, mas cuja reminiscência resgatamos ao nosso presente, de todas as vezes que o evocamos. 

não há futuro sem presente, letícia, e não há presente sem passado. estás algures à nossa frente, à espera do dia em que também nós nos tornaremos memórias, formas-fátuas da recordação para te alcançar e contigo continuar. enquanto isso, olhas-nos de onde estás. 

sabes? andamos por aqui perdidos, contristados por não nos teres avisado da partida, em busca de um sentido para lá dos que cada um de nós consegue atribuir à tua despedida. mais do que tudo, foi a falta de um anúncio prévio que mais feridas rasgou nos corações de quem te conheceu. 

os filhos devem sempre pospor-se aos pais nessa viagem. não há glória em se ter pressa nem honra em arrastarmos os pés.

fazes falta, letícia. aos teus pais e irmão primeiramente, que tanta saudade carregam nos seus corações. mas também fazes falta a todos quantos brindaste com a tua vida, com a tua bondade, a tua vivacidade e amizade. sabemos todos que a saudade só aparece às coisas que mais queremos, e é por isso que se torna tão difícil a tua ausência – porque não nos resignamos e porque nos revoltamos ante a crueldade desta realidade. porque descrentes nos assumimos em negar a evidência quando a evidência é tão sem sentido.

é como diz o povo, e como canta dave mathews, no seu álbum a solo some devil, na música “gravedigger”: you should never have to watch / as your only children are lowered to the ground / i mean / never have to bury your own babies…

tentam consolar-nos. a nós, àqueles que continuamos a acompanhar o devir da rotação da terra, com ocas promessas de uma eternidade ou a científica certeza de que somos pó das estrelas e às estrelas regressamos. não ao pó da terra, que essa nada nos diz, mas aos átomos que primordialmente nos criaram – os das estrelas. é a esses que regressamos, para podermos para sempre flutuar na imensidão deste universo que nos rodeia.

sabes? as pessoas urdem significados no caos aleatório em que estão imersas, oferecendo certezas e vendendo promessas, e nós aceitamos – por vezes – tudo o que nos é benéfico, e rejeitamos – por outras – tudo o não nos é benigno. é esta a nossa sina de sermos finitos. e tu sabes o que é o infinito, porquanto vives para lá da tua concha na morada do nosso pensamento.

a inteligência traz consigo esta angústia de nos sabermos transitórios, breves instantes passageiros na imensa eternidade do nosso universo. a dimensão deste cosmos não é compatível com a nossa fugaz existência de pirilampos. somos como a luz que encandeia e ofusca, um breve instante de plenitude alva que nos envolve e que desaparece; ou como as ondas da passagem de um barco no mar quieto – as lembranças do que somos e do que não seremos nunca mais.

o nosso corpo é uma segunda pele, letícia, uma ténue camada de derme que nos envolve por fora, contendo a maravilha do que somos por dentro. e tu eras maravilhosa, não só para os teus pais, mas para todos os que brindaste com a tua existência. sei que sabes disso e sei que sabes que sabemos – isso via-se na maravilha do teu sorriso e no brilho da luz que a tua derme não conseguia conter. irradiavas uma felicidade que nos contagiava a todos, mesmo aqueles cuja segunda pele é mais dura e naturalmente menos permeável à luz. 

a tua metamorfose, letícia, é o espelho da nossa tragédia. uma tragédia conquanto luminosa no eterno devir da nossa duração e que para sempre nos relembra da tal brevidade da luz ou das ondas do mar que tanto amavas. aquela imensidão de água que te envolveu nas tuas últimas braçadas, amparando o teu casulo de borboleta no momento da tua partida, será para sempre uma lembrança da tua imensa felicidade.

a música de mattews continua a tocar enquanto te relembro, a ti e aos teus pais, irmãos de tantos outros pais cujos corações se dilaceraram pelas partidas prematuras dos seus rebentos, e presto atenção às palavras

gravedigger, when you dig my grave, / could you make it shallow, / so that i can feel the rain?

choramos todos, e continuaremos a chorar pela tua ausência. mas sorrimos também, na certeza de que viveste plenamente e transbordaste de felicidade os corações dos teus pais, de tal forma que o teu parou. parou, mas continuará sempre a bater no coração do teu irmão, aquele que tanto desejaste não para te fazer companhia, mas para acompanhar os teus pais no seu devir na rotação desta terra. para que eles não ficassem sozinhos, porque te sabias efémera, breve instante de pura felicidade.

sabes?, foste um breve instante de luz que a todos nós nos ofuscou, uma onda do mar que a todos nos alcançou, e deixaste uma marca indelével em todos os que tiveram a felicidade de te conhecer antes de partires. 

foram 10 anos, 2 meses e 20 dias nesta crosta terrestre. ao todo, umas estonteantes 89.616 horas de intensa felicidade para a tua família. 

que descanses em paz e esperes por nós, para que possamos continuar o nosso devir para lá desta existência. 

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