MMXXI,23 - SOL NA EIRA, CHUVA NA EDUCAÇÃO
em 1970, a taxa de analfabetismo em portugal era de 25,7%. quer isto dizer que um quarto da população não sabia ler nem escrever, num total de pouco mais de 8 milhões e meio de indivíduos. quarenta anos depois, em 2011, a taxa desceu para 5,2%, num total de 10 milhões e meio de pessoas. passámos de cerca de 2 milhões e 200 mil analfabetos para 546 mil, aumentando ao mesmo tempo 2 milhões e tal de pessoas ao total da população do país.
há quem diga que antigamente é que era bom: que a escola era mais exigente e as pessoas saíam da 4ª classe a saber mais do que agora.
em 1970, portugal tinha uma taxa real de escolarização de 2,4%. era esta a percentagem de alunos matriculados nos vários níveis de ensino nas idades certas, face à população dos mesmos níveis etários. em apenas 50 anos, temos uma taxa de escolarização de 93%. passámos de um país não escolarizado para um país altamente escolarizado onde, por exemplo, 82,9% da população tem ensino secundário versus apenas 3,8%, em 1970.
há quem diga que antigamente é que era bom: que os alunos respeitavam os professores e sabiam a tabuada de cor e salteado. agora faltam ao respeito e são uns ignorantes.
entre a moldura do chefe da nação e o crucifixo de madeira, a saudação e o hino nacional cantado em harmonia, juntamente com uma oraçãozinha para dar ânimo à alma e fortalecer o espírito, apimentada com uma mão cheia de grãos de feijão seco no chão para os joelhos dos insubordinados, enfeitado com as orelhas de burro para os incapazes e a toque da palmatória para os insolentes, venha o diabo e escolha.
quer-se o sol na eira e a chuva no nabal, como diziam os antigos, quando se quer o melhor de dois mundos. falacioso, porquanto pouco há de bom nesta recordação de um sistema de ensino castrador, retrógrado e centrípeto, cuja saudade se confunde com o avançado da idade de quem a viveu e o sadismo de se desejar para os outros a desgraça por que se passou – que nem castigo geracional do género “mereces passar pelo que eu passei para dares valor à vida”.
é esta a nossa sina e a viragem geracional com que portugal se depara na educação. por um lado, tal como os treinadores de bancada, todos nós sentimos ter direito à opinião sobre como resolver as maleitas de um sistema em constante mudança; por outro, por termos sido estudantes, achamos que as gerações vindouras deverão passar pelo mesmo sistema por que passámos. que é para aprenderem a dar valor às coisas.
queremos um ensino que prepare os nossos filhos para os desafios de um mundo global e digital, mas insistimos numa sala de aula onde os alunos são dispostos em fila, em nada diferindo das salas de aula do estado novo, salvo as diferenças de carteiras que já não são monovolumes de madeira nem têm o buraquinho para o recipiente da tinta.
queremos um ensino que combata o insucesso escolar mas gritamos aqui d’el rei sempre que há o desenvolvimento de percursos alternativos, vocacionais, adaptados e profissionalizantes, tendo como pano de fundo a tal exigência dos professores dos tempos idos. como se uma oferta diversificada fosse sinónimo de facilitismo e negligência e não a resposta à diversidade da tipologia de alunos.
queremos um ensino que combata o preconceito e o estigma mas gritamos aqui d’el rei quando se proíbem os chumbos no primeiro ano de escolaridade. a miúdos com proveniências tão díspares como o pré-escolar, as amas ou a casa dos avós, não fará sentido que o primeiro ano seja um ano de adaptação? fará algum sentido chumbar crianças de 6 anos só porque antigamente se chumbavam e estigmatizavam os “burrinhos”?
queremos um sistema por ciclos (4 anos no 1º; 2 anos no 2º; 3 anos no 3º ciclo), unificados e partes integrantes entre si, nos quais os alunos devem progredir para aquisição de competências e conhecimentos a ritmos diferentes; queremos um sistema por ciclos exactamente porque sabemos que a idade que se tem nem sempre corresponde à maturidade que se deveria ter, porque sabemos que os alunos não são todos iguais, somos todos diferentes entre nós, mas depois gritamos aqui d’el rei que estão a deixar passar à toa se um aluno transita dentro de um ciclo com vários níveis negativos.
queremos um ensino adaptado aos nossos dias, flexível, competente e moderno, mas questionamos as metodologias que não se encaixam nos modelos de professores dos treinadores de bancada; criticando novas formas de ensinar e de transmitir conhecimento, vociferando que os professores perdem demasiado tempo a entreter as crianças ao invés de debitar a matéria a decorar para os exames.
queremos um ensino holístico, que desenvolva um cada vez maior número de competências e conhecimentos dos nossos dias, mas ficamos horrorizados se os alunos usam os telemóveis dentro das salas de aulas ou acedem à wikipedia – que nem armas do demónio ou sintomas de professores que não sabem “ensinar como antigamente”.
queremos um ensino digital e global, integrante e cientificamente validado, mas o conceito de digitalização é o de transferir para tablets e computadores os conteúdos dos manuais – muda-se a forma, mas mantém-se o conteúdo; alivia-se o peso das mochilas dos petizes mas mantém-se a mesma dinâmica de sala de aula e professor/aluno e vamos todos dormir mais descansados porque parecemos modernos porque temos manuais digitais. não importa que sejam os mesmos, desde que sejam nos tablets.
gritamos que estamos na cauda da europa, mas parece que nos esquecemos do nosso ponto de partida; afligimo-nos com os resultados dos alunos portugueses nos pisa europeus, mas esquecemo-nos de que estivemos durante 40 anos numa ditadura de promoção da ignorância de base 4ª classe – hoje a base é o 12º ano; arrancamos os cabelos e pedimos o rolar de cabeças políticas sempre que saem os resultados dos rankings (nem nisso somos originais a dar um nome português) das escolas, feitos pela e para a comunicação social, mas não consideramos os factores de contexto, nem sequer contestamos as métricas dessa seriação; vamos para a cama ansiosos porque temos um abandono escolar precoce elevado, mas nem sabemos bem o que é e confundimos com o abandonar da escola – que na altura do estado novo era frequente e hoje em dia é negligenciável de tão insignificante.
enfim, treinadores de bancada somos todos, e o problema é geracional, mais do que estrutural. queremos ser diferentes, mas usamos a mesma tabela com métricas europeias para medir essa diferença.
em 50 anos, demos saltos de gigante. não queiramos ser anões de novo. o mundo da educação não está nem é perfeito, mas saibamos ter a serenidade de reconhecer os estrondosos progressos que fizemos em tão pouco tempo.
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