MMXXII.22 - NIHIL OBSTAT - PEQUEMOS
a expressão latina “nihil obstat, quominus imprimatur” significa “nada obsta para que seja impressa” e era utilizada pelos censores da igreja católica, quando se referiam a obras a serem publicadas. queria dizer que, segundo os olhos imaculados da santa sé, nada continham do ponto de vista moral ou doutrinário que impedisse a sua publicação.
a instituição do “index librorum prohibitorum” – vulgo lista dos livros proibidos – foi apenas uma das muitas manifestações históricas daquela secular e natural tendência que a igreja católica tem para vigiar e salvaguardar a moral e os bons costumes. assim, o “index” era composto por obras que os imaculados olhos da santa sé consideravam conter algo que atentava à moral ou à doutrina, estando, portanto, proibidas de serem publicadas.
entretanto, a vida aconteceu. e o homem cresceu. e o “gott is tot” de nietzsche apenas expressou a natural e gradual perda de influência da imaculada santa sé. com ela, foi também perdendo a sua autoridade, e o homem não mais olhou apenas para os céus em busca de respostas, mas para dentro de si, para os seus arredores, abrindo os seus olhos de pecador à ciência, à tecnologia e ao desenvolvimento.
aos poucos, a igreja foi passando do estatuto de voz latina e obscura, cujas leis emanavam da inquestionável autoridade divina, até ao actual lugar que ocupa nas sociedades desenvolvidas, contribuindo com o seu estatuto de voz vernacular, permitindo uma sã convivência com um modelo de sociedade onde as leis emanam da vontade democrática do povo e não da invisível vontade de deus.
ao mesmo tempo que a igreja católica foi perdendo a sua influência, novas igrejas, seitas, crenças foram ganhando adeptos e visibilidade, angariando novos crentes no seio de comunidades tradicionalmente católicas, abrindo brechas e criando diversidade de escolha – tudo isto potenciado recentemente com as tecnologias de comunicação.
o mundo em geral, portugal e os açores em particular, tem atravessado uma “crise de vocação”, manifestado num acentuado declínio de novas ordenações e de novos alunos. na sua mensagem de início do ano lectivo 2022/2023, o seminário de angra do heroísmo lamenta o segundo ano consecutivo sem novos alunos. refere também que o número total de discentes é de apenas dez, repartidos por três turmas do segundo, quarto e sexto anos.
é claro que, neste natural contexto evolutivo, o surgimento de acusações e condenações de e por pedofilia e abuso sexual de menores, por padres católicos, em nada ajuda o combate à acentuada perda de vocação ou à angariação de novos aspirantes a padres. muito pelo contrário: é como se tivesse havido um desvio entre uma realidade em que a igreja católica apontava o dedo aos “infractores” para uma realidade em que são os “infractores” – o povo – a apontarem os muitos dedos à igreja.
um dos primeiros países a enfrentar o problema foi a irlanda, que há mais de 20 anos atrás, em 2000, criou a comissão para a investigação dos abusos infantis, que documentou casos de violação e assédio sexual de centenas de menores no seio das instituições católicas, entreo 1962 e 2002. ao todo, mais de 1.300 padres foram acusados.
em 2002, o jornal the boston globe revelou uma investigação profunda sobre abusos sexuais de menores por padres católicos, motivando dois anos depois a universidade de justiça criminal john jay, de nova iorque, a abrir uma investigação. as conclusões apontavam para um total de 10.667 denúncias contra 4.392 clérigos, acusando-os de abusos sexuais de menores, entre 1950 e 2002.
dos 4.392 clérigos acusados, apenas 252 deles foram condenados e 100 acabaram presos. o que a igreja católica tem vindo a fazer nos estados unidos são acordos milionários com as vítimas de abusos para evitar a justiça, tendo já pago mais de 3 mil milhões de dólares em indemnizações.
em 2010, na bélgica, no seguimento do escândalo de pedofilia de um bispo, a comissão para o tratamento de queixas de abuso sexual iniciou uma investigação, cujas conclusões levaram à abertura de uma investigação pelo governo belga e a criação de um centro de arbitragem independente, juntamente com outros dez pontos de contacto da igreja, o que totalizou 1.181 denúncias, entre 1950 e 1980.
em 2013, na austrália, foi criada uma comissão oficial para investigar o abuso sexual de menores em instituições como a igreja católica. em 2018, as conclusões apontavam para crimes contra cerca de 4.400 menores com idades entre 10 e 11 anos, em média, e cerca de 1.800 sacerdotes e irmãos religiosos foram acusados de abuso sexual entre 1950 e 2015.
nesse mesmo ano, a investigação de um grande júri da pensilvânia expôs abusos contra mais de mil menores, cometidos por mais de 300 religiosos ao longo de sete décadas − e revelou que desde 1963, no mínimo, o vaticano sabia de alguns desses casos.
em setembro de 2018, na alemanha, um primeiro relatório revelava que 3.677 crianças haviam sido abusadas sexualmente por um total de 1.670 padres, no extenso período de 68 anos – entre 1946 e 2014 –, sendo que metade das vítimas tinha menos de 13 anos.
em outubro de 2021, uma comissão independente francesa apresentou um relatório de 2.500 páginas, resultado de 36 meses de trabalho, o qual estima cerca de 330.000 crianças abusadas sexualmente por cerca de 3.000 padres, e alguns colaboradores da igreja católica francesa, nos últimos 70 anos.
em portugal, em janeiro de 2022, a comissão independente para o estudo dos abusos de menores na igreja católica portuguesa foi criada. o seu objectivo é estudar os crimes, pedindo às vítimas que dêem o seu testemunho, garantindo sigilo profissional e anonimato. em sete meses de trabalho, a comissão recebeu 362 testemunhas, resultando em 17 casos enviados para o ministério público.
em todos estes casos, há o denominador comum do conhecimento e conivência da santa igreja, em muitos deles tomando medidas paliativas de transferência de padres entre paróquias, o que, se por um lado acalmava o clamor em surdina que já se pudesse sentir numa determinada comunidade, por outro lado, ajudava a espalhar o crime e a aumentar consideravelmente o número de vítimas, pese embora noutros locais.
há quem continue a ver nestas estatísticas apenas uma “normalidade” portuguesa, semelhante à descrita pelo senhor presidente da república. uma normalidade que aponta para o estrangeiro como o sítio onde as coisas são piores, e para dentro de casa como o sítio onde, apesar de tudo, as coisas até não são muito más.
há também quem diga que não há mais pedófilos na igreja católica do que noutras profissões. não sei. depois de ler a confissão de um padre, do escândalo dos estados unidos, admitindo ter violado anal e oralmente um menino de sete anos na sua sacristia, deixei de acreditar.
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