ANTÓNIO (TOR)TTO
tal como as crianças que nascem com o pé torto, a que medicamente se convencionou chamar de boto, antónio tomás nasceu em lisboa em 1897 já de nome botto e torto foi também ao longo de toda a sua vida. ora pela inconveniência dos seus poemas, ora pela sua má língua quotidiana, exacerbada pela sua pública homossexualidade, o certo é que antónio botto foi um poeta maldito, escorraçado e ostracizado em portugal.
acabou por fugir para o brasil, depois de ter sido despedido do emprego de escriturário de primeira classe do arquivo geral de identificação por, diga-se, ser homossexual. também no brasil, aquilo que começou por ser um sentimento de alegria e de regozijo pela presença de tão ilustre poeta português nas terras do carnaval desnudo, rapidamente se transformou num sentimento de arrependimento, de desagrado e por fim de repulsa, tão conflituosa era a sua difícil personalidade.
publicado a 15 de julho de 1967, o primeiro número do suplemento glacial faz este ano precisamente meio século. dedicado ao poeta antónio botto, este número declara, na nota de abertura, que botto é “um dos maiores poetas portugueses” e que “[…] merece bem esta presença, este sinal vivo, esta afirmação de que, embora postumamente, o desejamos na altitude humana e literária a que a sua obra o ergueu e o manterá para sempre […]” .
prossegue a nota de abertura: “Não pretendemos reabilitar a Obra ou o Homem, porque não há que reabilitar aquilo ou aquele, que na verdade e na grandeza esteve sempre reabilitado. Saudamos a obra de um Poeta. Agitamos o seu nome e a sua poesia com a maior admiração, respeito e carinho! Festejamos a eternidade da sua Obra e do seu Nome!”
é interessante que um poeta tão mal-amado e tão controverso na literatura e história portuguesas tenha, apenas 8 anos após a sua morte, servido de mote para abrir a “página de literatura e pensamento” numa ilha como a ilha terceira. naturalmente rebelde, habituada ao confronto e à não convencionalidade das coisas, a terceira, e mais particularmente a cidade de angra, surge como berço natural para este tipo de rebeldia.
e o suplemento glacial foi criado tendo por base um espírito rebelde, não conformado, que incomodasse, mais do que tudo. a antónio botto escreveu armando cortês-rodrigues, a partir de são Miguel, neste primeiro número, este poema inédito:
GRITO DAS ILHAS
Para a lembrança poética
do poeta António Botto
Todo este mar é distância...
Tudo se torna amargura:
Sonho vago, que perdura
Dos longes da minha infância.
A vida toda: só ânsia,
Tormento de mais ternura...
Sempre no fundo tristura
Tecida na inconstância.
Não calarei minha voz,
Que nela vibra e ressoa
Quando grita dentro em nós.
Nem se perde o meu cantar:
Tudo o que digo reboa
Na voz imensa do Mar.
Tudo se torna amargura:
Sonho vago, que perdura
Dos longes da minha infância.
A vida toda: só ânsia,
Tormento de mais ternura...
Sempre no fundo tristura
Tecida na inconstância.
Não calarei minha voz,
Que nela vibra e ressoa
Quando grita dentro em nós.
Nem se perde o meu cantar:
Tudo o que digo reboa
Na voz imensa do Mar.
também almeida Firmino publicou este inédito:
EPITÁFIO
para a campa de ANTÓNIO BOTTO
Poeta, para quê partir,
Se cada viagem é um mito?
Paz ao coração das coisas,
para a campa de ANTÓNIO BOTTO
Poeta, para quê partir,
Se cada viagem é um mito?
Paz ao coração das coisas,
Que tudo quanto nasce
É já em si infinito.
É já em si infinito.
e por fim, carlos faria, o responsável pelo suplemento, publica igualmente um poema inédito cujo título é o nome do autor homenageado, fazendo assim lembrança à loucura bela e proibida do autor. glacial quererá, de alguma forma, inspirar-se no inconformismo combativo e apaixonado de antónio botto. uma inspiração literária, modelar, portuguesa acima de tudo.
ANTÓNIO BOTTO
Há poemas de mármore nas “Canções”...
Desejar beleza dói no silêncio,
os versos são esculturas, o corpo do poeta!
Há poemas de mármore nas “Canções”...
Desejar beleza dói no silêncio,
os versos são esculturas, o corpo do poeta!
- A loucura tem praias a invadir o mar
de corpos e segredos!
De braço dado com a morte,
Orfeu em água, o silêncio voa abismo,
cantar cria raízes...
Obra e Vida: a tua Eternidade!
de corpos e segredos!
De braço dado com a morte,
Orfeu em água, o silêncio voa abismo,
cantar cria raízes...
Obra e Vida: a tua Eternidade!
as ilhas dos açores têm visto nascer, crescer e morrer um conjunto de projectos literários em formato de suplemento jornalístico ou em formato de revista literária. temos sido profícuos na sua criação e morte. ora por falta de fôlego, de inspiração e paixão, ora por falta de leitores, de interessados, de quem, em última análise, permite e viabiliza tais projectos. o glacial assumiu-se sempre como aperiódico, o que nestes casos parece ser uma vantagem. ou seja, não tendo uma periodicidade fixa nem obrigações de entrega para cumprimento de prazos, pode dar-se ao luxo de atrasar ou adiantar uma edição somente quando a qualidade e quantidade de textos forem satisfatórias.
antónio botto também escreveu em quantidade, para além da qualidade. mas é de facto na sua poesia homoerótica e, por vezes, escandalosa, que reside parte da sua graça e interesse. é como bocage – se por um lado se aprecia fortemente a sua dualidade clássica e romântica, é na ordinarice e na vulgaridade do quotidiano sujo e decadente que mais sobressai como poeta.
ficam então uns versos de antónio botto, reveladores do incómodo e mal-estar que as suas palavras escritas (ou ditas) provocavam, no seio da sociedade menos acostumada à afronta:
INÉDITO
Nunca te foram ao cu
Nem nas perninhas, aposto!
Mas um homem como tu,
Lavadinho, todo nu, gosto!
Sem ter pentelho nenhum
com certeza, não desgosto,
Até gosto!
Mas… gosto mais de fedelhos.
Vou-lhes ao cu,
Dou-lhes conselhos.
Enfim… gosto!
30.01.2017
rogério sousa
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