DA ANTEMANHÃ



no seu quarto número, a 23 de dezembro de 1967, o suplemento glacial publicou uma antologia de poesia insular, com poetas de são tomé, cabo verde, canárias, cuba, madeira e açores. nomes como francisco josé tenreiro; jorge barbosa, aguinaldo fonseca, terêncio anahory; eugénio padorno, josé luis pernas; dulcília c. acevedo; herberto helder, vieira de freitas; pedro da silveira e silva grêlo, respectivamente, compõem este rico repositório de poesia dos finais da década de 60 do século xx.


a componente do “mar” é assumida e literariamente presente na selecção dos poemas desta edição, tanto que o editorial assim o afirma

“O mar é caminho: contra a distância e sem geografia política (...) O mar é de todos. Só quando tudo é de todos é que os homens são irmãos: é a justiça que o amor impõe! O mar é o mundo mais vasto deste mundo! É em função desta concepção Universal que hoje publicamos poesias de poetas de nacionalidade e etnias diferentes”. 

tornando desta forma o caminho que une todas estas etnias e sentires poéticos exactamente o meio que as diferencia e distancia na sua existência ao longo do tempo – o oceano. o mar – essa imensidão de água que cobre dois terços da superfície do nosso planeta e que é, em última instância, o verdadeiro universo dentro do nosso universo – acaba por ser a razão das nossas separações e o caminho das desejadas uniões. é para isto que nos remetem as linhas:

“Um homem que olha para o mapa-mundo deve sentir uma grande alegria ao verificar, para a Liberdade, que dois terços da sua superfície são de água! Fora do limite das seis milhas convencionais, nos oceanos é que é UNIVERSO!

é este sentir de universalidade ilhéu que orienta a selecção dos poemas que representam este número e que fazem a escolha do sentir poético das suas gentes. no caso dos açores, importa determo-nos um pouco sobre a escolha do poema de pedro da silveira, intitulado “poema da antemanhã” para representação do arquipélago dos açores. 


POEMA DA ANTEMANHÃ

Quando morrer em nós o último barco de emigração
e a saudade das Américas perdidas;
quando os nossos olhos deixarem de volver-se, tristes,
para o vapor a sumir-se na linha do pêgo;
quando descobrirmos a força que ainda guardam nossos braços
cansados de querer abraçar as estrelas;
quando os dias deixarem de rolar sobre os dias
sem nenhuma esperança para erguer;
quando, enfim, o nosso esforço de irmãos fizer brotar
uma outra vida no chão das nossas ilhas
– neste chão que ficou amorosamente esperando
os nossos corpos vencidos na aspereza dos caminhos
de retorno e – 
então, pátria, será nosso o teu destino!


é inevitável não ler este poema à luz da simbologia de um outro poema, de fernando pessoa, “antemanhã”, que faz parte da terceira parte da mensagem, e que carrega em si toda uma carga de significados e interpretações, os quais, mercê da proximidade e da estrutura do poema de pedro da silveira, merecem alguma atenção. 

a mensagem de fernando pessoa é um livro de poemas, o único que publicou em vida, que contém significação suficiente para seja lido como uma espécie de “puzzle” e de “jogo de palavras” que contam, de um jeito épico, os grandes feitos dos portugueses e de portugal ao longo da sua história, ao mesmo tempo que lança as bases para um reacender de um nacionalismo julgado necessário para que portugal volte a ser o grande império a que está destinado a ser, uma vez que o presente se afigura negro. 

ora, nesta sua estrutura cifrada e significada, fernando pessoa divide a obra em três partes, sendo a primeira dedicada à fundação da nossa pátria; a segunda à afirmação e crescimento da pátria portuguesa; e a terceira, triste mas esperançosa, ditava a morte da pátria com a morte de dom sebastião, ao mesmo tempo que lança toda a esperança de um futuro império na vinda de um novo d. sebastião, um tal de “encoberto” que chegará numa manhã de nevoeiro para salvar portugal do marasmo do presente.

ainda cá esperamos. 

mas o que interessa é que o poema “antemanhã” integra essa terceira parte – essa esperança num portugal mais realizado e mais próximo do seu potencial pleno, tal qual fora previsto por outros e por deus, e no qual o sujeito poético plenamente acredita. tal como está escrito no fado e na nossa eterna saudade do quinto império – saudosismo e sebastianismo que em pessoa fernando pessoa cultivava como afirmação nacionalista do ser-se português.

ora, o poema de pedro da silveira transpira desse sentimento e joga, logo e em primeira instância, com o próprio título do poema de fernando pessoa. ao chamá-lo de “poema da antemanhã”, pedro da silveira remete-nos para a significação da mensagem de um presente de marasmo e futuro esperançoso, ao basear o poema numa semelhante premissa temporal que se resume a “quando [algo acontecer] ... “então, pátria, será nosso o teu destino”.

aqui o termo “pátria” refere-se aos açores – às nove ilhas que o compõem – e não, como em fernando pessoa, a portugal como um todo. para o sujeito poético, só quando “morrer” em nós o último barco da emigração e das américas, só quando deixarmos de sentir tristeza por ver os barcos sumirem-se na linha do horizonte, só quando deixarmos que os dias se sigam uns atrás dos outros, e só quando todas as ilhas forem verdadeiramente irmãs, só quando, e apenas aí, poderemos “fazer brotar uma outra vida no chão das nossas ilhas”.

no “poema da antemanhã” há como que um resgatar de um destino que se quer autónomo, ditado pelas mãos que o clamam. há um apelo incontido à autodeterminação latente que importa de alguma forma fazer brotar. diz o sujeito poético que há um chão que espera, “(...) neste chão que ficou amorosamente esperando/os nossos corpos vencidos na aspereza dos caminhos/de retorno (...)” – uma espécie de marasmo que tem impedido os açores de verdadeiramente olharem para o chão que os sustenta e não as estrelas que pretendemos abraçar. 

há um conjunto de condições necessárias à plena realização do arquipélago dos açores. todas elas fortes condicionantes ao desenvolvimento, todas elas fortemente enraizadas na realidade do arquipélago de onde brotam. se por um lado, nos dias de hoje é possível perceber que o fascínio e a vertigem do el dorado da emigração perdeu em quase todo o seu esplendor, também é certo que não desapareceu de todo da existência dos açorianos. seja por via dos familiares mais directos que estão emigrados para ocidente, seja nos seus filhos, netos, sobrinhos ou afilhados. há sempre alguém que tem algum parente emigrado. e serão muitas gerações até este cordão umbilical se perder. se é que o queremos perdido, sequer.

a europa atenuou as assimetrias económico-financeiras entre os que ficaram nas ilhas e os que tentaram a sorte nas terras do lado das américas. agora, o dólar vale menos que o euro – pese embora toda a vida dos açorianos tenha subitamente duplicado de custo, de um momento para o outro, lado a lado com a entrada do novo milénio. mas atenuar não é fazer desaparecer. o fascínio ainda existe – o emigrar ainda é uma opção. estamos em 2017.

Quando morrer em nós o último barco de emigração
e a saudade das Américas perdidas;
quando os nossos olhos deixarem de volver-se, tristes,
para o vapor a sumir-se na linha do pêgo;

no seguimento das condições a serem observadas para a plena realização da pátria açoriana vem a utopia da atenuação do peso da religiosidade para a assunção plena de um caminho a seguir. diz o sujeito poético

quando descobrirmos a força que ainda guardam nossos braços
cansados de querer abraçar as estrelas;
quando os dias deixarem de rolar sobre os dias
sem nenhuma esperança para erguer;

que é como quem diz “no dia em que deixarmos de olhar para o céu à procura de respostas” e passarmos à acção, inevitavelmente teremos um objectivo por que lutar e nessa altura naturalmente os dias deixarão de “rolar sobre os dias/sem nenhuma esperança para erguer”. só quando soubermos para onde queremos ir, sem esperamos que alguém lá de cima nos resolva os nossos problemas, só aí, seremos plenos no nosso destino. 

sonha o poeta, que o sonho comanda a vida. pese embora a referência ao cansaço que os nossos braços têm de tentar abraçar as estrelas não pode deixar sem menção à ideia de nietzsche de que a hipocrisia do católico é o facto de nascer, viver e morrer na terra, passando toda uma vida olhando o céu à procura de deus, também aqui, o sujeito poético de pedro da silveira anseia que deixemos de olhar as estrelas e de deixar rolar dia após dia para tomarmos o nosso destino nas nossas mãos. 

diria o sujeito poético da mensagem
falta cumprir-se portugal! 

diria o sujeito poético d'a ilha e o mundo
falta cumprir-se os açores!



rogério sousa 
30.04.2017

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