MMXXI.7 - Nigga

 


a 29 de março de 2021 começou o julgamento de derek chauvin, o ex-agente da polícia de minneapolis acusado da morte de george floyd, a 25 de maio de 2020, por se ajoelhar no pescoço deste, quando estava já algemado e deitado de barriga para baixo, impedindo-o de respirar. estima-se que o julgamento dure cerca de um mês, depois de ouvidas todas as testemunhas e peritos, após o qual terá o júri de pronunciar o seu veredicto sobre o caso.

a morte de george floyd despoletou uma onda nacional de protestos, que ficou conhecida como black lives matter, extravasando as fronteiras norte-americanas e impactando o resto do mundo através das redes sociais. afinal, não são todos os dias que se assiste ao uso injustificado de força por parte de um polícia branco, que acaba por matar um suposto criminoso preto, assim, descontraído e impunemente registado e televisionado pelos diversos telemóveis dos transeuntes que assistiram ao evento. 

segundo a defesa do arguido, george floyd estava sob a influência de estupefacientes, representava uma ameaça aos agentes, e a decisão de algemar, deitar de barriga para baixo e colocar um joelho em cima do pescoço do nigga durante 9 minutos e 29 segundos foi a forma mais eficaz que derek chauvin encontrou para neutralizar essa ameaça.

é esta narrativa que os advogados de defesa pretendem desenvolver: o nigga morreu como consequência dos estupefacientes no seu corpo e não pelo uso excessivo da força do polícia branco. não obstante o direito à defesa, o certo é que a narrativa não se sustenta nem perante os testemunhos esmagadoramente contrários por parte de colegas, superiores e especialistas policiais no uso de força, nem tão pouco perante as inúmeras câmaras que registaram o evento – desde cctv, de trânsito, body cams dos agentes, e, claro está, dos telemóveis das testemunhas civis que assistiram ao espectáculo de morte.

pelo andar do julgamento, é bem possível que façam de derek chauvin um exemplo nacional, num país em que o racismo é estrutural e apenas deixou de ser legal há muito pouco tempo. não podemos esquecer que foi em 1962, há 59 anos apenas, que james meredith se tornou o primeiro afro-americano a ingressar na universidade de mississippi. até então não havia lugar para niggers, pretos, escuros, ou [introduzir termo desejado], uma vez que não eram iguais ao homem branco.

o que os estados unidos estão a passar no que concerne à cor da pele não é novo. outros países também o passaram, e outras comunidades também o sofreram. mais ou menos sistemáticos, mais ou menos enraizados nas sociedades onde ocorrem, os fenómenos de segregação daquilo que é diferente – o não “normal”, o não “local”, o não “nacional” – são mecanismos de autodefinição, por um lado, que permitem que determinadas comunidades se sintam “em pertença” ou “definidas” por oposição ao que não lhes é igual, e, por outro lado, são fortes mecanismos de mobilização no combate ao “outro” e na definição de políticas proteccionistas, galvanizadoras dos discursos de que o mal são os outros e não nós.

tendo sempre por base o medo e a ignorância, o discurso do negro malfeitor, drogado, ladrão e desajustado da américa w.a.s.p. – white, anglo-saxon, protestant – tem galgado gerações e desembocou, neste caso particular, num gesto de submissão do negro perante a figura de autoridade branca que, com joelho em cima do pescoço do malfeitor e mão no bolso, nada teme e não vacila. nem perante os gritos e apelos do submisso, implorando espaço para poder respirar, clamando pela sua mãe naqueles momentos de agonia, nem tão pouco perante os apelos dos transeuntes que assistiam, incrédulos, àquela manifestação de força bruta.

a expressão “nigger”, mais do que uma palavra, representa uma atitude perante o outro. uma atitude de superioridade de quem a profere sobre a quem ela é dirigida, um tanto ou quanto semelhante ao “kike” judeu, e que detém um poder histórico, mais do que conotativo. o poder da palavra proferida por um branco não é semelhante ao da palavra proferida por uma pessoa de cor. daí a derivação “nigga”, uma tentativa escrita de alterar o significado original depreciativo e assumir, aqui sim, um sentimento de pertença. “my nigga” não é o mesmo que “my nigger” – apesar de se entender serem a mesma coisa. não são.

clawfinger, uma banda sueca dos anos noventa, no seu álbum deaf, dumb, blind, ficou internacionalmente conhecida pelo single “nigger”. uma música que alerta precisamente para os perigos da utilização do termo “nigga” pelos próprios afro-americanos, denunciando que é nessa deturpação que reside a sua própria ruína. são seus versos: “(...) talking black pride then you call yourself a nigga/don’t bring yourself down ‘cause it just don’t [sic] figure/(...) it’s a negative word and the white man made it/gave you a name to dominate and trade it/making blood money of his very own race man/and all of this because the colour of your face man”.

o refrão da música é precisamente “nigga, nigga, nigga, nigga, nigga”. em 1993, data do lançamento do álbum, as ofensas ficavam mais ou menos com quem as sentia. trauteava a música quem queria, não havendo publicações em redes sociais nem comentários de censura ou desgosto. 28 anos depois, ai de quem ousar semelhante atrevimento. ao invés de se catapultar para a fama às cavalitas de uma preocupação racial, mais depressa se afundará numa torrente de indignação racista. sinais dos tempos. 

não são muito frequentes os insultos que se deturpam para se assumirem como designações de pertença como a palavra “nigger”. do depreciativo termo que perpetua um sentimento racista a um adjectivo entre colegas ou membros de uma comunidade, o caminho percorrido foi o de a palavra se manter em uso – com mais ou menos deturpação, cabendo a quem a profere a certeza da intenção de utilização. 

abster-se de utilizar o termo “nigger/nigga” é louvável e não deve ser confundido com retirar huckleberry finn dos planos de estudos literários pelo seu conteúdo racial, ou pretender a abolição do tintim no congo pela forma estereotipada e depreciativa com que hergé representa os congolenses. estes exemplos são o resultado de um pensamento anacrónico e uma espécie de ajuste de contas com um passado que não é o nosso. 

é o que aconteceu recentemente, com a polémica de vanusa vera-cruz lima, investigadora cabo-verdiana na universidade de massachusetts, dartmouth, que defende que os maias, de eça de queirós, é uma obra que contém várias passagens racistas e deve ser pedagogicamente abordada como tal. pese embora a atitude mais polida e menos combativa desta doutora, quando comparada com outras polémicas, a questão é semelhante às anteriores e merece condenação exactamente por não ater à realidade da sua criação. o vice-presidente da associação de professores de português relembra: “o que não podemos fazer é projectar juízos de valor formados nas vivências do nosso tempo sobre as acções dos homens do passado”.

é isso mesmo, my nigga.

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