MMXXII.14 - FIAT NÃO VIRES NEM CUSPAS PARA O AR

 



quando era ainda miúdo, a entrar nos anos noventa, o meu pai comprou um fiat panda de segunda mão, de 3 portas, branquinho, um modelo muito conhecido e acessível, uma opção muito jeitosinha para as nossas viagens de família da altura, pese embora um ou outro aspecto menos positivo. 

 

o aspecto mais saliente, literal e metaforicamente, era a trave de ferro que sustinha os assentos de trás, a qual atravessava de um lado ao outro o habitáculo, grossa e bastante resistente, que provocava sempre uma dorzinha a quem, inadvertidamente, se sentasse assim à vontadinha, deixando cair o corpo como se num sofá se sentasse. 

 

acontecia quase sempre que alguém entrava no carro pela primeira vez. agachavam-se pela porta da frente, pé dentro pé fora, torciam o corpo a meio caminho da entrada e deixavam-se cair mais ou menos devagar, consoante o peso, agilidade e idade do passageiro. a pancada seca na nuca recordava-nos sempre da existência daquele tubo metálico que se fazia rápida e dolorosamente sentir através da pouca espessura do assentos que sustinha.

 

mais ou menos por essa altura, uma expressão tornou-se muito presente na minha vida. a costumeira tirada da minha mãe – “fia-te na virgem e não corras” – que era, nada mais, nada menos do que a sua manifestação de descrédito, sempre que se via obrigada a responder às minhas tolices. 

 

ora, para mim, e tendo em atenção o nosso carro de família, as palavras que saíam da boca de minha mãe, e que eu assim as entendi durante um tempo considerável, eram precisamente: “fiat, não vires e não corras”. 

 

isto fazia-me todo o sentido, além do mais que o carro, para além da barra de ferro no assento de trás, tinha a particularidade de se inclinar exageradamente, de todas as vezes que se fazia uma curva mais apertada. a curva da inclinação do carro era directamente proporcional à velocidade a que seguia.

 

para mim, o “fiat, não vires e não corras” queria dizer: “não te estiques. não és um carro poderoso para corridas, e nas curvas tendes a capotar, pelo que deves igualmente evitar virares muito”.

 

só muito mais tarde percebi o verdadeiro significado da expressão, sendo certo que pouco tinha que ver com o significado que eu atribuíra empiricamente ao “fiat, não vires e não corras”, como expressão de cautela e cuidado quando em situações de risco.

 

para além da expressão “fia-te na virgem e não corras”, há uma outra que sempre esteve presente na minha vida: “não cuspas para o ar, que te pode cair na cara”. estiveram ambas as expressões mais presentes no meu pensamento até à leitura da sentença do caso que opôs os actores johnny depp e amber heard.

 

por um lado, um caso que opunha duas personalidades diametralmente opostas – ele, um pobre coitado povoado de demónios familiares e dores de crescimento a toque de álcool e drogas; ela, uma menina de bem, calculista, histriónica, manipuladora, de sonhos de estrela de holywood e megalomanias de celebridade, que exercia sobre aquele um poder de controlo através do abuso – verbal, psicológico, físico – e da violência doméstica.

 

ao acompanhar o julgamento – em directo e em deferido – pude perceber que aquele pobre homem não é mau nem violento. é autodestructivo, bebe muito e dá no pó para compensar as suas inseguranças. mas isso não o torna num abusador ou agressor. 

 

ao ouvir-se as testemunhas de ambos os lados, os especialistas, os advogados e as provas apresentadas, a figura de johnny depp desmorona perante os nossos olhos e surge a do pobre homem que, no âmago, nunca deixou de o ser. a intimidade exposta, as fotografias do homem caído no sofá, derrubado sobre o tapete – a fazer lembrar o desgraçado do david hasselhoff prostrado de bêbado a tentar comer um hambúrguer e a felicidade contida da filha que o gravou. enfim, figuras tristes de si e entristecedoras para todos nós.

 

é difícil não ficar com a sensação de que no fim de tudo houve justiça. que a agressora foi efectivamente punida. quem profere estas palavras merece castigo: “vai. diz a toda a gente. diz ao mundo que eu, johnny depp, um homem, também sou uma vítima de violência doméstica e vê quem é que acredita em ti ou fica do teu lado.” 

 

contudo, na senda do movimento #metoo e dos escândalos epstein e weinstein, com os seus salpicos em celebridades internacionais, realeza e povo, lado a lado no abuso sistemático de jovens raparigas para deleite pessoal, pareceu-me sempre que o homem partia em pé de desigualdade. o politicamente correcto poderia vencer esta.

 

uma figura caótica, meio rockstar com a sua banda holywood vampires, de olhar alucinado e representações macabras e faustosas, impetuoso e impulsivo, contra uma aparente girl next door, vítima indefesa porquanto frágil e naturalmente boa, sobre quem não recai, à partida, qualquer preconceito que o da beleza. alea jacta est!

 

ver o depoimento de amber heard, a forçar lágrimas de crocodilo que nunca lhe verdadeiramente saíram dos pontos lacrimais – nem do superior nem do inferior – e convencer-se de que ela foi mesmo vítima de violência doméstica é acreditar nas representações do charles bronson ou do steven seagal como simulacros da realidade, de tão perfeitas que são. 

 

e no entanto, #metoo ao pensamento, o politicamente correcto, o homem tóxico vs. a donzela em apuros, as drogas, os acessos, as tripes, as bebedeiras, as brigas anteriores, e uma pessoa vacila. receia que o júri embarque no embuste, na farsa, no cavalgar da onda da falsa vítima e da ostentosa vitimização, infelizmente bastante presente nesta actual sociedade instagramável. 

 

assisti ao impeachment da dilma rousseff, e fui deitar-me pesarosamente, sentindo o peso da injustiça e da farsa política tomar conta do meu ânimo; deitei-me de madrugada quando trump foi eleito presidente dos estados unidos da américa, de lágrima no olho, sincera preocupação e receio pelo futuro nas mãos de um psicopata megalómano e trigger happy; ouvi as declarações do júri do caso depp/heard a meio da tarde, de chávena de café na mão e ouvido atento, ansioso pelas palavras que, finalmente, saíram da boca do representante dos jurados. desta vez, não fiquei triste.

 

johnny depp conseguira provar ter sido vítima de violência doméstica às mãos de amber heard; amber heard escrevera um artigo difamatório do bom nome de depp com intuito explícito de lhe fazer mal e provocar dano; que graças a esse artigo johnny depp perdera vários contratos de trabalho e esse fora um dos intuitos de amber heard; que ficara provado que amber heard agira com malícia e com intenção de fazer mal a johnny depp. 

 

venceu a justiça e a verdade. perdeu o abuso e a máscara do aproveitamento e da vitimização femininas, tão costumeiras e fáceis de se alcançar nestas discussões.

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