MMXXII.18 - SÓ QUE NÃO, SANNA
dois mil e tal anos passados sobre o célebre episódio do “atire lá a primeira pedra de entre vós aquele que nunca pecou”, entretanto imortalizado em livro e com adaptações cinematográficas, poderíamos ser induzidos em erro e pensar que o tempo decorrido fora suficiente para que a mensagem de cristo se implementasse, lenta mas sustentadamente, nos corações dos homens.
só que não.
dois mil anos pode parecer muito, mas na verdade é muito pouco tempo. pode dizer-se que poucas foram as mudanças operadas no cerne do ser humano, ao nível da sua base raquidiana, e ser capaz de aceitar os seus semelhantes sem preconceito ou julgamento moral não tem sido uma prática muito comum. isto traduz-se, naturalmente, numa actuação social que vem deixando lastro desde as primeiras perseguições ideológicas e religiosas.
pese embora a igreja evangélica luterana da finlândia seja uma das maiores igrejas luteranas do mundo, contando com cerca de 76,4% de adeptos e membros no país, o certo é que, de acordo com o worldpopulationreview.com, no ano de 2021, 62% dos finlandeses se declararam ateus. uma fama finlandesa que não é de agora, e que, como tal, cria uma expectativa acerca da actuação do país que se espera ser ponderada e racional, porquanto desprovidos que estão das amarras sociais dos estados pouco laicos.
seria de se esperar de um país como a finlândia uma visão mais ateísta da sociedade e, portanto, mais propícia à liberdade individual de expressão, de movimento, de associação e de religião. a liberdade é também o resultado da nossa capacidade de deixarmos os outros terem a sua liberdade sem nos apoquentarmos com isso.
não seria de esperar de um estado predominantemente ateu uma caça às bruxas, ou um auto de fé, mas foi isso precisamente que aconteceu à primeira-ministra do país, sanna marim, por ter sido julgada em praça pública depois de umas imagens e vídeos da mais jovem governante do país se terem tornado virais, mostrando-a em cenas de diversão nocturna, numa festa particular.
as reacções não se fizeram esperar, alcançando uma polarização antagónica que foi do “ela não tem condições para governar e deve renunciar ao cargo” ao “ela é uma pessoa normal e tem direito à sua diversão”. uma polarização cada vez mais habitual nestas guerras de opinião digital e que deixa pouca margem para a concertação da saudável discussão.
dir-se-ia que nos encontramos num mundo desenvolvido do século xxi – um século moderno, trilhando o caminho da liberdade, igualdade e fraternidade por que os nossos antepassados tantas vezes lutaram, e por que ainda hoje tantos lutam –, onde as mulheres e os homens, de mãos dadas, constroem um futuro radioso para a nossa existência,
só que não, sanna.
dir-se-ia que vives num país nórdico, daqueles que os pedagogos advogam como vanguardistas em prol da educação, onde a desigualdade entre homens e mulheres é menor do que nos outros países e onde a paridade de sexo é uma preocupação constante. só que não, sanna.
dir-se-ia que vives numa democracia madura e robusta, onde uma mulher como tu, sanna, jovem, dinâmica e lutadora, pode fazer o seu caminho na vida que escolheu, da mesma forma que os seus conterrâneos masculinos, sem que seja julgada pelo seu sexo ou pela sua genuinidade. só que não, sanna.
dir-se-ia que a política é das mais nobres funções, daquelas que enaltecem a alma e humildam quem as desempenha, porquanto representantes do povo eleito, do povo são voz e face na decisão e no poder. portanto, parte do povo: do povo, pelo povo e para o povo. que é como quem diz que os políticos são, na verdade, também eles, povo. só que não, sanna, só que não.
dir-se-ia que neste século da modernidade as pessoas quereriam políticos de carne e osso, políticos verdadeiros, que, pese embora o peso das suas responsabilidades, não deixassem de ser pessoas, até porque foi exactamente por isso que foram eleitos: as pessoas, como se sabe, votam em pessoas, não em slogans ocos e inconsequentes.
só que não, sanna. ainda não.
dir-se-ia que os políticos, por serem pessoas, têm várias vidas próprias: a sua, particular, inalienável e intransmissível, a familiar, a social e todas as outras vidas para que todos nós somos convocados ao longo dos múltiplos momentos da nossa existência. vidas que ditam, portanto, uma separação natural delas e do trabalho, até porque as pessoas têm gostos, desejos, amigos, família e conhecidos com os quais interagem na intimidade da sua individualidade e dir-se-ia que são, naturalmente, livres de o fazer.
só que não, sanna.
não têm, nem são.
ainda temos muito caminho pela frente e, no que concerne à igualdade entre homens e mulheres, tu, como primeira-ministra da finlândia, foste uma bruxa a ser caçada e uma herege a ser queimada em praça pública em autos de fé instagramáveis.
lamento vivamente todos os desenvolvimentos posteriores à divulgação das imagens entre teus amigos. lamento profundamente que te tenhas submetido a um teste de controlo de drogas, para apaziguar a turba violenta que clamava pela tua cabeça. por fim, lamento muitíssimo que te tenhas sentido obrigada a fazer a declaração que fizeste no passado dia 24 de agosto, na qual te emocionaste e choraste, clamando tristemente pelo direito à privacidade e à diversão, como uma criança que suplica o direito à brincadeira.
triste daquele que não se diverte pelo peso do cargo que ocupa. a dada altura, deixará de ser pessoa e passará a ser uma função.
sanna, infelizmente, esta é ainda uma batalha que terás de enfrentar no caminho que trilhas em busca de um mundo melhor para ti e para os teus. e esse caminho, como a tua conterrânea tarja turunen bem o diz, na sua balada “i walk alone”, é difícil e solitário, mas é teu.
i walk alone/ every step i take, i walk alone/ my winter storm holding me awake/ it's never gone when i walk alone.
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