MMXXII.25 - AO EDUARDO ALMEIDA - A EXACTIDÃO NO ACASO

 


o eduardo almeida foi meu professor de geologia no décimo segundo ano, porque geologia fazia parte das minhas disciplinas específicas. biologia e geologia – em 1996, era possível cursar-se as duas num ano. se, por um lado, tive o triste infortúnio de a primeira me ter sido debitada por uma bruxa míope, por outro lado, tive a enorme felicidade de a segunda me ter sido ensinada por um dos melhores professores que conheci ao longo da minha vida.

 

para muitos, geologia era apenas a fuga à física ou à química e o professor eduardo sabia disso. deixava bem claro nas primeiras aulas não admitir que a sua disciplina fosse uma mera escapatória às disciplinas ditas “mais difíceis”. para mim, foi um tiro no escuro. já tinha tomado contacto com as outras duas, mas sentira ter apenas aflorado o estudo geológico. mais a mais, em ciências da natureza sempre gostara dos meteoritos e dos vulcões. portanto, por que não?

 

e por que não, de facto? fui matriculado numa turma de desporto, cheia de rapazes que estavam ali para fugir à química e à física, e, pese embora o professor achasse que eu também estava ali nas mesmas condições – não estando –, acabei por encontrar na geologia a porta de entrada para que a ciência tivesse um lugar muito presente na minha vida. 

 

para isto, muito contribuiu positiva e duradoura ascendência que o professor teve sobre mim. o eduardo almeida não é apenas um professor de geologia, porquanto a sua paixão e dedicação à disciplina extravasam a mera função instrutiva da docência e permeiam a dimensão da pura aprendizagem – do puro acto de aprender. aquela dimensão do ensino que só se consegue na pura partilha de conhecimento que faísca no olhar do eterno curioso do mundo à sua volta. 

 

é assim o professor eduardo: dedicado, de olhar sedimentado nas camadas geológicas do nosso passado; empenhado, com a sábia clarividência da previsão dos comportamentos geológicos futuros; e comprometido na transmissão do conhecimento científico como a alavanca do desenvolvimento e a base da tomada de decisão diária e mundana de todos nós. 

 

aprender com o eduardo é aprender que há uma certa serenidade apropriada em saber-se que o mundo é parte de um ecossistema cognoscível e dinâmico, a partir do qual colhemos os frutos do nosso desenvolvimento como espécie, rumo (preferencialmente) à melhoria do bem-estar e da qualidade de vida de toda a humanidade. 

 

para o eduardo, não há adamastores, mas também não há almoços grátis. o equilíbrio entre o desenvolvimento do ser humano e a sustentabilidade do planeta terra é precário e cabe a cada um de nós a responsabilidade de contribuir para um mundo melhor. 

 

foi por causa do professor eduardo que procurei outros comunicadores científicos, como carl sagan, stephen jay gould, desmond morris ou matt ridley, ávido de mais vozes que me transmitissem o conhecimento de que necessitava e me respondessem às questões que me assolavam com a mesma naturalidade e serenidade que o eduardo almeida mo fazia.

 

lembro-me de uma vez o professor eduardo ter chegado para lá da tolerância normal que se dava aos “furos”. para certos professores não havia qualquer tolerância: dava o segundo toque e era um tal correr pelas escadas do liceu abaixo, de onze degraus cada lance, até aos pátios dos metaleiros ou para fora da escola, não fosse o professor tentar recolher-nos de volta para a sala. 

 

com o professor eduardo era diferente: esperámos para lá do segundo toque. e eis que, ao fundo do corredor, lá surgiu a sua figura em contraluz, esbaforido e em passo rápido em direcção à sala, de botas de cano e martelos debaixo de ambos os braços. tinha havido uma pequena derrocada, provocada pelo mau tempo da noite anterior, na escarpa onde agora é o barceló angra marina, acrescentando que aquele era um dia espectacular para irmos à caça de fósseis. 

 

e assim fomos. tenho em casa dos meus pais os dois fósseis que encontrei na escarpa do faleiro, nesse dia, a escavar a terra de costas para o porto de pipas. são umas lindas folhas, contemporâneas das pirâmides do egipto, que foram envernizadas e conservadas segundo as orientações do nosso professor de geologia, e que ainda hoje se encontram em excelente estado de conservação. 

 

lembro-me também de uma outra vez em que falávamos sobre a viscosidade dos fluidos e de como o petróleo e a água afloram à superfície, não jorrando, devido às pontes de hidrogénio e à coesão da água. quis saber mais. o professor alertou não ser do programa e necessitar de uma explicação mais profunda do tema. insisti. queria perceber. 

 

perante a minha insistência, aceitou explicar se lhe respondesse acertadamente a uma questão qualquer sobre as ligações dos átomos de hidrogénio e oxigénio. não me lembro da pergunta, tampouco da minha resposta. mas o certo é que daquele momento em diante a aula passou a dar-se entre nós os dois, ficando na sala quem quisesse, saindo quem tivesse mais que fazer do que aprender. 

 

lembro-me com saudade a forma exageradamente despiciente com que tratava as questões da literatura e da arte na sala de aula, provavelmente iniciadas por mim e porque tinha interesse nesses assuntos. o professor eduardo não tinha interesse nesses assuntos e deixava bem clara a sua posição. 

 

falava como se a literatura e a palavra poética fossem fogos-fátuos e delírios esotéricos de gente que não tem que fazer. nem a poesia nem os romances salvam vidas humanas ou desenvolvem tecnologia para o homem avançar. dizia-o com o exagero da ironia, mas com a graciosidade do homem de ciência que diz não ter tempo a perder com humanidades.

 

referia-se à sua esposa, a grande ana lúcia almeida, como uma eterna apaixonada das palavras e da poesia, ao passo que ele, o grande eduardo almeida, não tinha tempo para minudências da alma ou trejeitos do coração. como se não tivesse coração – vá, passe o eterno cliché da imagem –, como se no lugar do seu coração lhe tivessem colocado uma pedra. o que não deixa de ser adequado, tendo em atenção a disciplina. 

 

há quem diga que aos professores rara ou nunca se agradece, sendo a docência, portanto, uma missão um tanto ou quanto ingrata. discordo. não só se agradece, como se deixa escrito para memória futura:

 

quero agradecer ao professor eduardo “calhau” almeida por tudo o que contribuiu e o que não sabe que contribuiu para eu ser quem sou hoje.  

 

obrigado.

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