LAMENTO DAS LAJES PERDIDAS


vista da serra de santiago sobre a zona onde se viria a construir a base

vitorino nemésio não gostava muito da ideia de se transformar o grande "celeiro" da praia da vitória numa pista de alcatrão para aviões descolarem e aterrarem. ainda para mais sendo aviões de guerra, pássaros de metal que trazem consigo destruição e tristeza.

para vitorino nemésio, trocar a fertilidade cerealífera do "ramo grande" - orgulho de produção e de riqueza - por uma base militar em troca de compensações financeiras seria sempre um mau negócio. 

até porque, como alerta o poeta, "cimento não dá pão alvo" - o pão que era produzido com base nos cereais dos campos onde se iria instalar a base aérea n.º 4 ao serviço dos norte-americanos e portugueses. 

sai então, em "festa redonda", livro publicado em 1950, o poema "cantigas ao campo das lajes" que lamenta esta troca 


Cantiga ao Campo das Lajes


A moda da gasolina
Secou o trigo do chão;
Fez das Lajes um terreiro,
Oh que dor de coração!

Ó avião da carreira,
Carregadinho de bombas,
Tu foste a nossa desgrácia
E o espantalho das pombas!

- Oivi uma chocalhada,
Di noite, em riba das telhas;
Mas não era caçoada,
Reses, cabras nem ovelhas.

Eram quinhentos queimados
Voando por trás da serra,
dando nicões de aço fino,
Traques de fogo de guerra!

Tanto caga-fogo de alto!
tanto bidom, tanto prigo!
cimento não dá pão alvo
como dava o nosso trigo.


como podemos ler, nas palavras do sujeito poético desta cantiga, as lajes não conseguiram resistir à "moda" que grassa a humanidade, na época de 50, corporizada aqui na figura da "gasolina" como alimento para os motores de tudo o que é mecânico e sinónimo do progresso quiçá um pouco desenfreado dos nossos (dele) dias. 


vitorino nemésio em cima de um burro na praia da vitória

lamenta que o chão se tenha tornado um terreiro, seco, árido, sem fertilidade. por sobre o qual sobrevoam "aviões da carreira" que trazem bombas, destruição e espantam as pombas que, de outra forma, estariam livremente a voar pelos campos do ramo grande. 

há, se quisermos, uma espécie de premonição do sujeito quando avisa que ouviu, por sobre a sua cabeça e durante a noite, quinhentos "queimados"* que trazem consigo a destruição em "traques de fogo de guerra" com tanto "prigo" e tanto "bidom" de gasolina. adverte, em jeito de conclusão, que o cimento não dá pão tão branco

(aqui símbolo de pão mas também de pureza, de não sujidade, em contraste com a tradicional cor escura e oleosa associada à gasolina, ao militar e, neste caso, ao cimento que substituirá o chão fértil do outrora ramo grande da praia da vitória

quanto dava o "nosso" trigo - aqui o apelo ao que é de cá contra o que vem de fora. uma espécie de velho do restelo que grita não do cais de belém mas da praia ou do paúl para quem o quiser ouvir. ora numa cantoria ao desafio ou numa outra ocasião que pudesse ou sacar da sua viola ou da sua declamação para reafirmar o erro desta troca.

passados 66 anos da publicação do poema "cantiga ao campo das lajes", helder xavier e joão mendes gravaram uma versão musicada do poema, com algumas variações que importa e faz sentido que se apontem, trazendo assim aos dias de hoje não só uma questão actual como uma variação contemporânea e, quiçá, mais irónica, mercê do tempo que já entretanto passou desde que vitorino o escreveu primeiro. 

nas palavras dos próprios, é uma "versão" de uma "versão" de uma "versão", tendo o poema "cantigas ao campo das lajes" sido musicado pelo professor josé joão, da freguesia do porto judeu.




CANTIGAS AO CAMPO DAS LAJES

A moda da "gasolinha"
Secou o trigo do chão;
Fez das Lajes um terreiro,
Oh que dor no coração!

Ó avião da carreira,
Carregadinho de bombas,
Tu foste a nossa "desgrácia"
E o espantalho das pombas!

Eram quinhentos queimados
Voando por trás da Serra,
Dando nicões de aço fino,
Traques de fogo e de guerra!

Tanto caga-fogo de alto!
Tanto bidom, tanto "prigo"!
Cimento não dá pão alvo
Como dava o nosso trigo.

Levantei-me. A minha ergueu-se,
Foi logo direito ò berço.
Agasalhou a "meninha", 
Pegou nas contas do terço.

Ó Senhor Espírito Santo,
Lá da Casa da Ribeira,
Leva fome, peste e guerra
Dos campos da Ilha Terceira!
(...)
Cimento não dá pão alvo.
Com areia dá... salitre.


esta versão aqui gravada é, segundo os "tocadores", uma versão de uma versão de uma versão - que é como quem diz: "perdemos a noção do que é adaptação". é o que é. e o que é, na nossa opinião, é a ideia do poema original, com a adição do elemento religioso, de rezar-se o terço em pedido ao "sprito" santo que leve para longe dos campos da terceira - já não apenas o da praia - a fome, a peste e a guerra. 

note-se também a pronúncia, vincada, marcada como marca distintiva da sua essência. palavras como "desgrácia", "queimados", "nicões", "bidom"**, "prigo", meninha" povoam diária e naturalmente o quotidiano dos açorianos, mais particular dos terceirenses, para quem esta música e este alerta são dirigidos. 

uma nota final para a brincadeira com o "salitre", designação genérica para todo o sal oxigenado nítrico, mas que na ilha terceira quer dizer particularmente as formações que surgem nas paredes das casas quando as construções são feitas com areia do mar, que quando não é bem lavada, e após a sua mistura com o cimento, tem tendência a manifestar-se ao longo de praticamente a vida útil de uma casa. é costume dizer-se que é quase impossível livrar-se uma casa do salitre de que padece (quando padece). 

misturar cimento com areia - areia escura, dos açores, do mar - é condenar a construção ao fracasso. 

fica o aviso. 


* - milhafre - nome científico buteo buteo rothschildi - também conhecido na ilha terceira como "queimado"
** - estrangeirismo - "bidão"


rogério sousa 
14.06.2017


fotografias: colecção biblioteca pública e arquivo regional luís da silva ribeiro - angra do heroísmo
helder xavier - voz e guitalele
joão mendes - violão

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