MMXXII.09 - PARENTE POBRE
não havia grandes dúvidas de que a cultura é, para muitos, o parente pobre da sociedade. durante e após a pandemia do covid-19, ficou bem patente que a cultura não só é uma componente negligenciável, desconsiderada e ignorante para grande parte da massa política que nos gere, como também não é motivo de contestação ou desagrado por parte dos cidadãos, quando lhes falta.
a ironia que subjaz a esta constatação é a de que as pessoas só são educadas e funcionais com base na cultura que consomem, mas sentem que, em caso de aperto, é a cultura que mais depressa se pode ignorar, porquanto não tem a autoridade acéfala do futebol nem a sua geração de riqueza, tal como não tem a sua movimentação de influências políticas nem a sua propensão para a ilegalidade.
dito de outra forma, na hora do aperto, o futebol é mais importante do que a cultura, apesar de quem o decidir ser culturalmente educado – é como se as coisas fossem importantes quando são para nós e para o nosso engrandecimento, mas depois são pouco importantes no momento do aperto porque já somos grandes.
esta falta de relevância da cultura na sociedade, ou, pelo menos, a falta de importância que lhe dão, sentiu-se na forma como os eventos culturais foram sendo os últimos a reabrirem ao público, para além de que, ao contrário do pessoal do futebol, o pessoal da cultura não é, na sua maioria, profissionalizado. é carolice, sazonalidade e amor à camisola que se alega quando treinamos.
quem é que não se lembra da estupidez económico-social de se permitir que as pessoas se amontoassem umas em cima das outras nos aviões, sem restrições de lotação, quando os teatros se mantiveram fechados, e, numa segunda fase, com lotação limitada? há-de haver que não o tenha presente, mas eu não consigo deixar de ver a imagem da dra graça freitas, titubeante, para a frente e para trás, naquela mesa comprida, a tentar explicar o inexplicável, justificando o injustificável
– é que nos aviões as pessoas ficam voltadas para a frente...
e tornando todo aquele espectáculo numa versão trágica de uma comédia de mau gosto, como se – ricardo araújo pereira tão bem o salientou – as pessoas que se sentam numa sala de cinema para ver um filme, ou numa sala de espectáculos para ver uma peça de teatro ou um concerto, estivessem constantemente a olhar para trás e para os lados, propagando as gotículas tão contagiosas da doença e fazendo com que aqueles espaços fossem antros de disseminação do covid.
por outro lado, quem é que não se apercebeu de que a cultura, e a sua componente de entretenimento, foi um dos pilares de sustentação da saúde mental das pessoas, durante o primeiro confinamento total, e posteriores momentos de reclusão caseira de todos nós?
as séries televisivas, os filmes, os espectáculos transmitidos via internet e a redisponibilização de espectáculos outrora transmitidos, entre tantas outras formas de distribuição e streaming culturais, foram todos essenciais para a distracção das pessoas, para o seu entretenimento, enfim, para o seu usufruto e educação cultural e para que o número de pessoas que pegam numa arma e desatam a disparar sobre tudo e todos os que os incomodam não tenha subido drasticamente com a pandemia.
“e pur si muove!” lá diria galileu, na versão romantizada que as boas histórias tendem a ser contadas, referindo-se à independência do movimento de translação da terra para lá da crença obtusa da inquisição. que é como quem diz, independentemente daquilo que a religião possa querer, o certo é que a terra se move à volta do sol e não o contrário. ou seja, independentemente do entendimento obtuso político sobre a importância e o papel da cultura na sociedade, a verdade é que “ela” se move e se manifesta e se revela diária e geneticamente no sentir das pessoas, dos grupos, das colectividades, e demais agentes culturais e criativos.
nos açores, parece que o parente pobre empobrece-se diariamente e o governo pouco ou nada faz quanto a isso. três semanas volvidas sobre a novela do padre e da secretária e ainda não “habemus” director regional da cultura. questionada sobre isto, a secretária pouco pode senão balbuciar o óbvio: que ela não faz ideia do que é que o paulo estêvão quer ou vai querer, nem tão pouco faz ideia do que será o seu futuro, quanto mais responder a perguntas difíceis.
se não for nomeada directora da cultura, a actual sub-directora, para além de uma lição de desconsideração política, ensinar-nos-á a todos que o “sub” é mais de “suplente” do que de “vice” e que a sua existência pouca ou nenhuma diferença fará no cômputo geral da governação. a não ser do ponto de vista do cargo e da satisfação política de ilha, mas isso são outras contas e outros rosários, que em nada beneficiam quem deu a cara pelo seu partido, candidatando-se nas autárquicas contra o actual presidente de câmara, e deu o corpo às balas para... bom, veremos. quando o governo entender nomear alguém para o lugar vago do padre.
a verdade é que no fim de contas quem perde somos todos nós, açorianos, e os agentes culturais e os artistas em particular. estamos em abril e ainda não se sabe nada sobre os apoios do rjaac – regime jurídico de apoio às actividades culturais – para 2022. ou seja, no ano passado, o então director regional da cultura definia como uma prioridade estratégica “a recuperação da vida e da economia culturais da região autónoma dos açores no tempo pós-pandemia, assim como a revitalização da cultura tradicional e o reforço do apoio às formas contemporâneas de arte”.
são estas as palavras ocas do aviso n.º59/2021, de 1 de julho de 2021, que definia o prazo para a apresentação de candidaturas de projectos de 1 de junho a 31 de agosto de 2021, para serem executados em 2022. para além da incompetência de se apresentar esse prazo de candidaturas no dia 1 de julho, já decorrido um mês, a verdade é que ainda não só não foram comunicadas os resultados aos interessados, os quais têm os tais famosos dez dias para audiência de interessados, e depois a publicação em jornal oficial, como não há previsão de comunicação.
mais a mais, nesta pobreza parental, a cultura ainda não deu sinal do seu conselho regional. aquele órgão consultivo sobre o qual tive ocasião de trocar uns quantos argumentos com deputados do psd/açores que diziam ser de grande importância a criação de tal órgão, porquanto a cultura, sendo um assunto tão importante, merecia e só se dignificava tendo um conselho consultivo para auxiliar o governo na tomada de decisão e na definição de políticas culturais para a região.
vê-se, pela acção e não pelas palavras, o quão importante é a cultura para este governo. lá dirá qualquer padre: isto de boas intenções está o inferno cheio.
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