mmxxi.01 - transform.ista


dizer que “saudade” é a palavra do ano de dois mil e vinte é uma redundância. saudade é já uma palavra de patente portuguesa – dizem intraduzível, até –, uma parte substancial da natureza anímica do português e em torno da qual se tem desenvolvido uma grande parte da sua cultura, sendo, portanto, uma parcela vital da – vá lá, simplificando – “alma” portuguesa.

dizer que “saudade” é a palavra do ano de dois mil e vinte é chover no molhado, portanto. tão eficaz quanto chorar pelo derramado. a palavra nem devia ter sido aprovada para votação. enfim, são vicissitudes próprias destes concursos, às quais nos vamos rendendo, tal como nos rendemos às doces esperanças de são miguel, em dois mil e dezanove.

a palavra do ano de dois mil e vinte é “transformista”. do sufixo ista com a raiz transform, uma palavra por sufixação. e na sua denotação base: a de alguém, ou algo, que se transforma, se muda, se altera, não importa se devagar ou depressa, desde que se transforme.

dois mil e vinte foi um ano bissexto. foi um daqueles aos quais se acrescenta um dia para sincronia e fiabilidade do calendário gregoriano – não vá o eixo da translação da terra ficar desajustado – e que é motivo de grande alegria para quem neles nasceu a vinte e nove de fevereiro. nos outros anos, o motivo de grande alegria ora se celebra a vinte e oito de fevereiro ora a um de março. o que é uma chatice, convenhamos.

dois mil e vinte foi um ano transformista porque a pandemia o tornou num ano charneira, pré-dois-mil-e-vinte/pós-dois-mil-e-vinte, que escapará durante muito tempo ao negro vaso da água do esquecimento dos anos; foi um ano transformista porque transformou hábitos sociais em todo o mundo – incluindo nos países inicialmente resistentes às medidas de contenção; foi um ano transformista porque transformou paradigmas de trabalho, de educação, de investimento, de receita, e de inúmeras outras áreas da actividade humana. 

janeiro e fevereiro não previram os restantes dez meses de dois mil e vinte. nem eles, nem todos os videntes do mundo que vaticinaram um excelente ano para todos nós, consoante, claro está, os respectivos signos e ascendentes de cada um. desta vez não. num golpe de acaso que nem os astros nem o trecentésimo sexagésimo sexto dia que foi introduzido previram, uma pandemia deitou por terra parte da charlatanice. não toda, porque continuaram a facturar durante o confinamento, numa época em que a frase mais repetida andou perto de “dizem-me as cartas que você não vai poder viajar durante algum tempo”.

n'a rainha de copas, matt ridley desenvolve a ideia de que a espécie humana e os vírus se têm combatido, de há milhões de anos a esta parte, numa luta mortal e cíclica, oscilando entre a vitória de um e a vitória do outro. de uma vez, vence o vírus, derrotando o humano, matando muitos humanos e proliferando no seu contágio, de seguida, uma mutação, e surgem humanos com resistência imunitária natural ao vírus, com a consequente vitória do humano sobre o vírus, morrendo muitos vírus e não permitindo contágio, de seguida, uma mutação, e surge o vírus com uma forma desconhecida do sistema imunitário do humano, e volta a vencer o vírus, repetindo-se ad infinitum. 

“rainha de copas” é uma referência ao momento em que a alice do país das maravilhas foge das tropas da rainha, que lhe quer cortar a cabeça. apesar de correr muito, tanto quanto pode, alice mantém-se sempre no mesmo sítio – tudo à sua volta acompanha a velocidade de corrida, mas alice não avança no terreno. parece que avança, mas logo de seguida recua, ou, afinal, nem verdadeiramente se moveu. da mesma forma, homem e vírus têm lutado entre si, mantendo-se sempre em empate técnico.

não obstante o empate entre ambos, a verdade é que é esta força de mutação parte essencial para a evolução humana e responsável por termos chegado a este homo sapiens sapiens. o transformismo, a capacidade de mudar é o que orienta, quer o adn humano quer o viral. está-lhes nos genes, literalmente.

dois mil e vinte foi também o ano em que a soma dos votos de uma direita sedenta de poder e humildemente disponível a tudo transformou o cenário político dos açores, com um cheirinho de extrema direita para apimentar o caldo. o partido socialista não formou governo, como deveria ter sido, e o representante da república de marcelo optou por uma sandes mista com extra queijo, operando desta forma o milagre do transformismo: transformou adversários em companheiros, inimigos em melhores amigos, premiando os ferrenhos e os familiares, conseguido ressuscitar velhos desaparecidos, e fazer surgir um exército de apoiantes-que-sempre-foram-psd-cds-ppm assim de súbito, alguns até então haviam sido apoiantes e nomeados pelo partido socialista.  

dois mil e vinte foi também o ano em que cessei funções como adjunto do gabinete do secretário regional da educação e cultura do xii governo dos açores, cargo que desempenhei desde dois mil e catorze, e retomo a docência. foi sem dúvida uma experiência única, da qual me orgulho imenso e na qual evolui imenso – como pessoa e como profissional. 

como entendo que cargos de nomeação política se devem abster de artigos de opinião na imprensa escrita porque, comprometidos que estão com o governo em funções, facilmente se percebe que a verdadeira isenção não existe, não o fiz enquanto adjunto. não adjunto, retomo assim a "morte da bezerra”, para quem me quiser ler, neste diário insular que sempre me acolheu.

Rogério Sousa
escreve de acordo com o pré-acordo

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