mmxxi.02 - ofensas anacrónicas

 




em 2016, a tinta da china publicou “direito a ofender – a liberdade de expressão e o politicamente correcto”, de mick hume, com tradução de rita almeida simões. um livro que salman rushdie, acostumado a sentir na pele a intolerância e perseguição religiosas, apelidou de “fulcral” para os nossos dias. 
 
fazendo minhas as palavras do autor dos “versículos satânicos”, mick hume apresenta-se-nos como um autor “convicto, destemido e empenhado em desconstruir os argumentos falaciosos contra a liberdade de expressão, defendendo esse valor sem reservas”.
 
para quem, como eu, defende a liberdade de expressão, embora por vezes com argumentos menos lúcidos do que hume, “direito a ofender” foi uma lufada de ar fresco neste ar bafiento de ofensa politicamente correcta que respiramos no mundo ocidental. 
 
o direito a ofender é, natural e intrinsecamente, inalienável do direito à liberdade de expressão, a qual só é plena quando não limitada por adversativas ou reservas. caso contrário, condicionada pelo politicamente correcto, a liberdade de expressão nada mais é do que a possibilidade de se dizer o que se pode e não o que se quer – para não ofender o “outro”. 
 
é esse “outro” indefinido, agregado em comunidades e franjas sociais, minoritário e exigente, que importa não agitar. paninhos quentes e canja de galinha para os estômagos fracos dos ofendidos que não suportam a diferença de opinião nem a liberdade de pensamento dos “outros” que os ofendem. é este o politicamente correcto dos nossos dias, televisionado, postado, partilhado e comentado nas redes virtuais.  
 
ai daquele que ofender. o julgamento público é avassalador e a onda de indignação uma avalanche destrutiva que arrasta consigo carreiras, filmes, músicas, espectáculos e performances, fazendo cair em desgraça todos os que ousarem usar a liberdade de expressão para a expressão da sua liberdade de pensamento. 
  
em 2019, o primeiro-ministro canadiano justin trudeau veio publicamente pedir desculpa por ter participado, em 2001, numa festa temática das “noites da arábia”, para a qual vestiu um turbante e pintou a cara de negro.  
 
dezoito anos depois de se ter fantasiado de árabe e divertido à brava (pelo menos a julgar pelas fotos, nas quais a meia lua dos dentes da boca sorridente de trudeau é o único traço branco), o agora primeiro-ministro do canadá veio, qual cordeiro manso pronto para o sacrifício, lamentar o acto racista de que foi autor. a sua reeleição estava à porta, e não se podia dar ao luxo de perder o eleitorado de cor. 
 
uma estupidez. 
 
senti uma enorme revolta: um político que eu admirava era, afinal, um maricas invertebrado, vergado sob o peso do politicamente correcto e disposto a um anacronismo de quase duas décadas, apenas comparável à tentativa de censura da obra “tintim e o congo”, intentada pelo congolês mbutu mondondo, sob pretexto de a obra ser racista.  
 
ora, como bem foi explicado pelo tribunal belga que julgou o caso, hergé não só não era racista, como a representação gráfica dos congoleses que está presente na obra (inicialmente publicada a preto e branco em 1931) deriva do contexto histórico da sua criação. condescendente, talvez, não racista.  
 
não é possível olhar-se o passado com as lentes do presente, da mesma forma que não é fiável projectar-se o futuro com base nas premissas estáticas dos nossos dias. falham ambas, redondamente.  
 
é urgente aprender a ofender e a ser ofendido, a defender e a ser atacado, e a sofrer as consequências daquilo em que se acredita. o politicamente correcto, usado neste sentido, é uma porta escancarada numa borrasca, uma panaceia homeopática que só serve para engrossar extremismos, inverter prioridades e contribuir para uma inflexão social que traz consigo a ditadura da minoria. 
 
atentos, sempre. anacrónicos, nunca.  
 
 

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