mmxxi.5 - santos da casa da cultura

 


a crise financeira internacional de 2007/8 marcou, no meu entender, uma viragem no que diz respeito ao apoio dos promotores aos artistas regionais, e o regresso à normalidade que se avizinha ditará o futuro deste apoio. 

antes da crise, nos açores, havia uma tendência para a importação de cultura. tudo o que era bom vinha de fora. nacionais ou internacionais, com uma predilecção natural para tudo o que não falasse português, os artistas que valiam um bilhete eram estranhos às ilhas. os residentes existiam e sabia-se da sua existência. só que… sabem como é… o filipe la féria é sempre o filipe la féria e ninguém enche salas como o filipe la féria.

naturalmente, um sentimento de falta de apoio era comum aos artistas regionais, particularmente nas camadas mais novas, e deu azo ao surgimento de um conjunto de iniciativas – algumas espontâneas, outras programadas, outras ainda meramente circunstanciais – que tinham como base o incentivo e a promoção da criação e criatividade regionais, com uma crescente apetência e interesse pelos jovens artistas regionais. 

devido à crise, nos seus múltiplos processos e com as suas disseminadas consequências, e ao abrandar de verbas disponíveis para dispêndio nos “grandes artistas”, os promotores lato sensus sentiram necessidade de se voltarem para dentro, olhando em seu redor para os seus conterrâneos, para os artistas regionais, para os santos da casa, portanto. 

e bota que tem a promover eventos e espectáculos locais, insulares, regionais, como se não houvesse amanhã, sentindo-se um ambiente de novidade no ar, respirando novos nomes e novas apostas da cultura dos açores. 

afinal, nós sempre apoiámos os artistas locais, que em nada devem aos estranhos. estes, que só vinham à região actuar, receber o seu cachet e regressar para o continente; estes, que no fim de contas apenas servem de veículo de exportação do dinheiro de cá; estes que não deixam nada de perene com a sua passagem pelo arquipélago e, muitas vezes, se multiplicam em actuações por essas festas de verão para ganharem mais ainda; estes, e outros tantos argumentos foram brotando, que nem hortênsias a adornar em debrum as figuras das nossas ilhas.

claro está, beneficiámos todos. por força de uma crise financeira, e na impossibilidade de se gastarem as quantias de tempos idos em animação e entretenimento, perdão, cultura, esta mudança de atitude saldou-se extremamente positiva. todos nós sentimos uma valorização e atenção aos artistas regionais (muitos deles entretanto profissionalizados, fruto da geração que retornou às ilhas) como nunca antes se havia visto. 

ganhou o artista, ganharam os promotores, ganhou o público, ganhámos todos nós – que nos enriquecemos e aprendemos a olhar para dentro, que valorizámos o que de nós brota como pujança cultural e criativa, e deixámos de sobrevalorizar o “estranho” na base do sotaque. passámos a olhá-los lado a lado: regionais, nacionais, internacionais, enfim, globais.

não fosse também este um dos ganhos da globalização. no início dos anos noventa, e antes deles, a criação artística nas ilhas estava limitada à sempiterna geografia, que sabemos valer outro tanto quanto a história, e suspensa num ou noutro raio de genialidade, com oportunidade misturada à sorte. 

menos de vinte anos volvidos, a geografia passou a valer menos, e as tecnologias de informação e comunicação e o surgimento da internet permitiram que a produção artística e cultural dos açores se desse a conhecer ao mundo. se thomas friedman tivesse vivido nos açores nessa altura, o seu o mundo é plano teria contemplado outros universos de análise sobre o profundo alcance da globalização nas ultraperiferias mundiais, das quais os açores são exemplo.

a par de tudo isto, uma nova geração de artistas convive com espaços físicos dedicados à contemporaneidade, galerias e centros de arte contemporânea, uma nova geração que explora a criatividade temperada com concursos, residências artísticas, exposições, performances, uma nova geração que se dá a conhecer em roteiros de festivais, programas de eventos, multiplicados numa panóplia de outras manifestações culturais e artísticas, dispersas por todos os açores, saltitando entre o atlântico e as suas duas margens com um clique digital.

e é precisamente quando estamos num processo de gradual retoma económica da crise financeira, com belíssimos indicadores da expansão do universo de acção dos artistas e dos projectos culturais regionais modernos e abertos ao mundo, que nos cai uma pandemia ao colo. 

cultura fechada. apesar de ser o sustento de milhões de almas neste mundo que não se suicidaram durante o confinamento porque puderam consumir cultura, nas suas mais diversas formas. irónico, não é?

portanto, depois de um ano praticamente privados de cultura – quer na promoção quer no usufruto – é mais do que natural que a aposta do coliseu micaelense em trazer o pedro abrunhosa a são miguel tenha gerado tanta revolta. não é só porque é o pedro abrunhosa. é também pela expectativa defraudada de mais um frei tomás na zona.

uma miríade de gente que reclamou da falta de apoio aos promotores, artistas, agentes, criadores e demais durante o confinamento, e bem, clamando contra a lenta asfixia daqueles que fazem da arte e da cultura as suas vidas e o primeiro pamonha que abre uma sala como o coliseu é o abrunhosa? será? e tu e eu o que é que temos que fazer? não,

não posso mais.

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