MMXXI.6 - CULTURA DE ENTRETENIMENTO

 


no anterior artigo considerei sobre, entre outros aspectos, a retoma da programação do coliseu micaelense, a infeliz escolha do artista para assinalar tal decisão, assim como a natural revolta e polémica geradas em torno da questão da promoção dos artistas regionais e do espaço, ou falta dele, que os mesmos ocupam nas opções culturais dos promotores públicos.

nem de propósito. a jeito da emenda do soneto – que, diz-nos a sabedoria popular, é sempre pior que o soneto em si – a restante programação, que incluía os artistas regionais joão moniz e sara cruz já neste sábado, foi suspensa. dizem as más línguas das redes sociais que tal se deveu a um elemento da equipa do abrunhosa ter testado positivo para o covid. diz o comunicado do coliseu micaelense que a suspensão se deveu à decisão da direção regional de saúde, considerando o aumento de casos na ilha de são miguel.

seja a verdade qual for, o certo é que a retoma da programação foi efémera. tal como o  brilhantismo do músico portuense. tivesse o coliseu micaelense apostado de início num concerto com artistas locais e, se calhar, a suspensão teria afectado somente os de fora e não os locais. 

casa roubada, trancas à porta e não se chora sobre o leite derramado porque não vale a pena. são opções e há que as respeitar, pese embora a possibilidade de crítica. e o caso do coliseu micaelense é paradigmático. abriu portas para trazer quem vem de fora, e fechou-as de novo para quem já cá está. que sirva de emenda, se tal for possível, porque a aprendizagem só acontece quando a velhice não o impede. 

a cultura parece estar agora na boca das pessoas como o segmento social dos mais fustigados à conta dos confinamentos, suspensões, medidas de prevenção e prevenções. são imensos os sectores sociais e económicos afectados por esta nova realidade pós-2020, sendo certo que à cabeça surgem invariavelmente a produção e usufruto culturais. 

de acordo com um relatório da consultora ernst & young, intitulado reconstruindo a europa: a economia cultural e criativa antes e depois da covid-19, as perdas acumuladas no sector da cultura, em 2020, ascenderam aos 199 mil milhões de euros, das quais 90% se reportam ao sector das artes performativas. 

as artes visuais sofreram uma quebra de 38%, a arquitectura de 32%, os livreiros e editoras 25%, e o audiovisual 22%. os restantes tiveram uma quebra entre os 20 e os 40%, assim como a imprensa, com quebras de 23%, a publicidade, de 28%, e a rádio, de 20%. se as coisas não estavam fáceis no sector radiofónico, mercê das novas tecnologias e aplicações, 2020 veio agravar ainda mais um sector já de si em crise.

houve uma quebra de facturação de cerca de 31%, em comparação com 2019, nas indústrias culturais e criativas europeias que, de acordo com o relatório, será inferior à quebra sofrida pela aviação comercial, mas superior à do turismo e da indústria automóvel. segundo o grupo europeu de sociedades de autores e compositores, que encomendou o estudo, o sector das indústrias culturais e criativas representava, em finais de 2019, 4,4% do produto interno bruto da união europeia, com receitas na ordem dos 643 mil milhões de euros, empregando cerca de 7,6 milhões de pessoas. 

certo é que, nos açores, o peso das indústrias culturais e criativas não é, de todo, comparável com os valores descritos no estudo, até porque, de acordo com um inquérito promovido pela direção regional da cultura, a grande maioria da produção cultural e criativa nos açores é feita em regime de voluntariado. que é como quem diz, por amor à camisola. contudo, apesar de o peso não ser equiparável, o “rombo” da covid-19 será igualmente demolidor, prevendo-se, no caso europeu, uma recuperação de décadas até se atingirem os valores pré-pandemia.

para lá da cultura de entretenimento – consubstanciada nos agentes e no agenciamento, na produção e nos produtores e promotores, na manutenção e abertura das salas de espectáculo, no público sentado e nas bilheteiras abertas e a facturar – há uma componente que pouco tem vindo a lume no debate da nossa polis e que é basilar quando consideramos esta realidade. falo da criação per se. 

se por um lado as restrições pandémicas impedem o usufruto por parte dos diversos públicos dos espectáculos costumeiros, por outro, impedem também o desenvolvimento da criação, vital para a construção do produto acabado e de cujo processo criativo os artistas dependem, não só como fonte de rendimento, mas também para desenvolvimento da sua própria arte.

o confinamento e as restrições aos espaços abertos ao público trazem consigo um desincentivo à criação artística. e isso, para além de redutor, é irreparável e trará um hiato criativo que será difícil de ultrapassar. 

a exposição do trabalho final ao público é apenas um momento, quiçá dos finais, de um processo criativo que envolve demasiados mecanismos para esmiuçar e considerar neste artigo. de qualquer das formas, é um processo orgânico e dinâmico que, estando os tradicionais espaços de apresentação encerrados, provoca um efeito de inércia e desmotivação que importa contrariar.

e como contrariar esta tendência? não há uma resposta única e certeira por si só. no entanto, o caminho é o da criação de mecanismos que promovam a criatividade dos artistas, que desenvolvam o processo criativo e promovam a experimentação, desenvolvendo desta forma a produção e a criação artísticas.

infelizmente, a julgar pela proposta do programa do governo tricéfalo dos açores para 2021, apresentado sem auscultação prévia dos parceiros sociais e aceite pelo padreco presidente da assembleia legislativa regional sem tosse nem mugido, não haverá lugar a quaisquer respostas neste sentido. 

sem referência à criação lato sensu ou à criação artística contemporânea, aos equipamentos culturais ou à promoção de residências artísticas – mesmo virtuais –, a projetos de promoção, programas de apoio à criatividade, à edição literária, musical, plástica, performativa, ou outras medidas, temo que o hiato que se adivinha seja ainda de maiores proporções. 

a ausência de expressões como “jovens criadores” ou de palavras como “contemporaneidade”, “criatividade” ou “inovação” como móbeis da produção cultural nos açores, configura um silêncio que grita mais do que manifestações em prol da cultura. naturalmente, são palavras pouco dadas a quem não pode ter obstáculos entre si e deus. 

para quem pode, há que ter fé, acima de tudo.

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