MMXXI.10 - A IGNORÂNCIA É ATREVIDA (sobre a delegação das obras públicas do pico)

 

o tema deste artigo encerra uma carga de tristeza e desalento, profunda e sentida por mim e também por muitas pessoas, devido à decisão da delegação das obras públicas da ilha do pico de apagar quatro obras de arte pública, partes do “roteiro de arte pública da madalena”, promovido pela miratecarts. 

a questão da importância do património cultural material e imaterial, no que concerne à promoção turística de uma região, tem sido sobejamente debatida, defendida e comprovada, em vários palcos e por vários agentes e decisores políticos. a arte urbana é parte de uma aposta num turismo de qualidade, uma visão contemporânea, sem medo de dialogar com o seu passado, consciente do seu lugar no presente e com os olhos postos num futuro melhor.

a comissão europeia tem publicado documentação referente à importância da cultura no turismo, apontando que caminhos seguir na busca de um turismo sustentável, contemporâneo, de salvaguarda do património material e imaterial. nas “orientações temáticas para investimentos no turismo”, a comissão destaca a prioridade dada aos investimentos que se concentrem numa melhor valorização do património cultural e artístico local.

em 2015, o huffington post listou as cidades europeias nas quais a arte urbana surge como móbil turístico, e lisboa surge no primeiro lugar da lista, referindo o jornal que a capital portuguesa é a única cidade europeia que possui um departamento urbano de arte de rua do estado. o artigo de ricardo campos e ágata sequeira “entre vhils e os jerónimos: arte urbana de lisboa enquanto objeto turístico”, publicado em 2019, apresenta o exemplo de lisboa e o seu roteiro de arte urbana como caso de estudo.

vhils é considerado um dos artistas de rua portugueses de renome internacional, a par de bordalo ii, e pantónio, que, sendo terceirense, não só tem um número dedicado na colecção opus délits da crietères éditions, intitulado “pantónio – la mécanique des fluides”, várias obras espalhadas pelo mundo, como também pintou o mural mais alto da europa, num prédio situado no 13º bairro de paris, em 2014.

o festival de arte urbana walk&talk, da associação cultural anda&fala é um evento de abrangência internacional e apresenta uma impressionante galeria de obras de arte de rua espalhadas por são miguel, de tal forma que o jornal financial times referiu que “o festival walk&talk foi um pioneiro no turismo criativo (…) e instrumental ao encorajar o diálogo com o território, com a cultura e a comunidade açorianas.” 

na terceira, a academia de juventude e das artes da ilha terceira, na praia da vitória, promoveu acções de formação em street art como parte do seu plano formativo; a associação cultural burra de milho promoveu diversas workshops em arte urbana, durante o festival azure, e, em conjunto com a autarquia de angra do heroísmo, criou o angra criativa, com intervenções de arte urbana em diversos espaços; e o walk & talk interveio em diversos edifícios na ilha, contribuindo sobremaneira para o roteiro de arte urbana da ilha terceira, referido recentemente no aturado trabalho “a arte urbana da rural ilha terceira”, de paulo lemos, publicado no portugalarte.pt.

sei que estou a ser redutor quando destaco estes projectos, uma vez que os açores têm muito mais intervenções de arte urbana noutras ilhas, mas permitam-me o injusto destaque para exemplificação da importância dos roteiros de arte urbana no turismo cultural, e o trabalho que tem vindo a ser desenvolvido, desde meados dos anos 2000, por tantas pessoas e associações culturais nos açores.

no pico, a associação cultural miratecarts celebra nove anos de existência. ao longo deste tempo, sob a orientação do picaroto terry costa, tem trabalhado incansavelmente na organização de eventos, concursos e festivais, no desenvolvimento de acções de formação e residências artísticas, incitando, apoiando e potenciando o capital criativo e cultural dos artistas, do pico e fora do pico.

é resultado deste labor o discoverazores – plataforma de descoberta de novos artistas regionais; o festival internacional fringe – que conta com mais de 2000 artistas participantes de 64 países e que, de 1 a 27 de junho, celebra a sua 9ª edição com o mote “9 ilhas, 9 anos, 9 temporadas”; o “roteiro de arte pública da madalena” – que pretendia ser um itinerário turístico da vila da madalena; o documentário atlantes – uma visão sobre a ilha e a criação artística; o montanha pico festival – um festival em torno da montanha; o anima pix – festival de animação do pico; o cordas – world music festival, onde já participaram cerca de 35 artistas internacionais, 9 do continente e 51 açorianos, dos quais 7 colectivos.

o roteiro de arte pública da madalena, criado em 2014 com o nome “roteiro dos murais na madalena”, inclui várias obras de arte urbana. a delegação das obras públicas decidiu unilateralmente apagar para sempre a "flora azorica", da uruguaia rocio matosas; decidiu fazer desaparecer a "the last atlantean", do português guilherme gamito; decidiu que não era possível de forma alguma repintar a "la muse bleu... l´amuse bleu" do luso-francês carlos farinha; e decidiu que era mais fácil despejar tinta branca sobre a "adventure time", do micaelense navi the character, do que encontrar com a miratecarts uma solução que não implicasse a destruição das obras feitas.

no meio de tantas cabeças pensantes responsáveis na delegação das obras públicas do pico não houve uma que pensasse que se calhar não seria boa ideia apagar essas obras de arte, assim do nada; que, se calhar, elas tinham um autor e um promotor; que, se calhar, até faziam parte de um roteiro referenciado internacionalmente; se calhar, só assim, se calhar, faria mais sentido mantê-las, repintando e intervindo naquelas que necessitassem de intervenção; e já agora, se calhar, alguém que pensasse assim, ao de leve, que apesar de serem cepos de sensibilidade cultural, porque revelaram ser, deviam pedir opinião antes de agir, que é o que a prudência nos aconselha quando se é ignorante em dado assunto. nem que seja por cortesia.

se tudo o anteriormente referenciado for insuficiente para argumento, resta-me a irónica constatação de que é uma estupidez um organismo do governo apagar arte pública que foi realizada com dinheiro de apoios à cultura do mesmo governo.

tenho pena que o atrevimento da ignorância, quando chefia, mesmo que interina, tenha tais consequências e modos de agir. perde a madalena, e o pico, e perdemos todos nós, açorianos.

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