MMXXI.9 - O BOI DO CORVO

 

a 24 de junho de 2019, deu entrada na assembleia legislativa dos açores um projecto de resolução da representação parlamentar do ppm/açores, aka paulo estêvão, que pretendia transferir para o espólio do ecomuseu do corvo os dois exemplares empalhados do boi-raça anã que integram a colecção de história natural do museu carlos machado.

para além da falsa premissa de que essa “raça anã” era exclusiva da ilha do corvo, o projecto defendia, e o seu proponente defende, que o património de uma ilha deve permanecer nessa ilha, um pouco à laia da argumentação usada pelas ex-colónias ao defenderem a reposição do espólio que se encontra nos países colonizadores. como se são miguel fosse o país colonizador e o corvo uma ex-colónia que agora reclama os seus pertences de natureza. mais a mais, desfazer uma colecção de história natural de um museu para satisfazer uma pretensão pessoal não é uma questão, aos olhos do proponente. 

importa aqui esclarecer que o projecto museográfico da rede pública de museus dos açores, à qual se juntou a rede de museus e colecções visitáveis dos açores, tem vindo a ser desenvolvido ao longo de vários anos e tem por princípio uma visão global e complementar da oferta museográfica dos seus componentes. ou seja, cada museu deve apontar referências museográficas para os museus circundantes, mostrando desta forma uma visão regional, unificada mas complementar. dito de outra forma, não deve ser o pico a única ilha a apresentar museografia sobre a caça à baleia, dado que a houve noutras ilhas, da mesma forma que não deve ser são jorge a única ilha com referências museográficas do fabrico do queijo, apesar de o queijo de são jorge ser o mais conhecido. insistir noutra visão é insistir numa visão localista, fechada e de ilha, não regional, não aberta e não complementar.

como tal, e após auscultação de peritos e responsáveis, o parecer à proposta de transferência foi negativo por várias razões: ao contrário do defendido pelo proponente, a raça não é exclusiva da ilha do corvo; os dois exemplares em causa foram oferecidos pelo conde de fenais aquando da criação do museu carlos machado e integram a colecção de história natural, não havendo razão para desmembrar a colecção, assim, de um pé para a mão; o ecomuseu do corvo é mais do que um mero repositório expositivo – é um museu a céu aberto, composto pelo seu património material e imaterial e pelas suas gentes e não deve ser entendido ao estilo de espaço de exposição; mais a mais, as exigências de conservação desses dois exemplares obrigam a um conjunto de pressupostos que o ecomuseu do corvo não garante, mercê da sua natureza não expositiva.

a votação em plenário, a 13 de fevereiro de 2020, rejeitou a pretensão do deputado paulo estêvão, na sua primeira intenção, mas o governo de então deixou a porta aberta para a cedência de tais exemplares ao ecomuseu do corvo, integrados numa exposição temporária – mesmo que feita para o efeito – que permitisse aos visitantes, e aos locais, a tomada de contacto com a realidade da raça e com os exemplares em apreço. tal pretensão foi liminarmente rejeitada por paulo estêvão, alegando que o património do corvo pertencia ao corvo e que o pretendido era a transferência a título definitivo e não a título provisório.

porque é que isto é importante? bom, porque recentemente a secretária regional da cultura, ciência e transição digital, suzete amaro, contrariamente ao parecer do director do museu carlos machado e fazendo tabula rasa de todo o historial parlamentar desta pretensão, decidiu autorizar a transferência de um dos exemplares do boi-raça anã para o ecomuseu do corvo, satisfazendo assim a vontade do deputado paulo estêvão. ignorando pareceres técnicos, não apresentando uma justificação plausível e aceitável para tal decisão e abstendo-se de explicar a sua museografia ou sequer a garantia das suas condições de conservação, a secretária da cultura faz a vontade ao deputado do corvo. 

tão somente isto: o deputado paulo estêvão ameaçou, em fevereiro de 2020, que a transferência dos exemplares ia acontecer e a verdade é que aconteceu mesmo. para os mais esquecidos, o que paulo estêvão disse na sua declaração de voto de vencido foi, e transcrevo: “um dia, como vai acontecer em relação a todo o material etnográfico que foi recusado por parte do governo, um dia, estes exemplares empalhados do boi de raça anã da ilha do corvo vão ser transferidos para a ilha do corvo. quando o governo for outro ou quando a maioria for outra”.

o boi do corvo foi, portanto, promessa cumprida. mal sabia o deputado que não era preciso ter usado uma disjuntiva na sua promessa: neste momento, o governo é outro e a maioria também é outra. mais sorte que juízo.

paulo estêvão não se esquece nem perdoa, e isso ficou bastante claro na decisão da secretária da cultura e na conivência silenciosa do director regional da cultura. por mais que paulo estêvão publique no jornal palavras mansas a ironizar que não manda em nada no governo, que é um mero deputado sem qualquer poder e que tudo o que se diga em contrário não passa de “filmes” na cabeça dos outros, os da oposição; por mais que publique no jornal palavras acusadoras, levantando suspeitas e destilando veneno pessoal sobre o director do museu carlos machado, o pe. duarte melo, numa vil e mesquinha vingança por este ter emitido um parecer que (bem) salvaguarda a colecção e os seus exemplares e não a vontade embirrenta do deputado; por mais que tente mostrar o contrário, paulo estêvão manda e cumpre as suas promessas.

o director regional da cultura nem tossiu nem mugiu, o que não seria de esperar dada a natureza bovina do caso. calado que nem um rato, ricardo tavares escondeu-se por detrás de publicações no facebook, brindando às “mentes anãs” e noticiando a devolução dos museus alemães de elementos etnográficos às ex-colónias, numa clara alusão a este caso, mas sem coragem de homem nem palavra de dirigente para vir a público explicar o porquê de ignorar pareceres técnicos e tomar tal decisão política para fazer a vontade ao boi do corvo. bom, não sabemos se a vontade do boi é mesmo a de ser transferido para o corvo, mas que há vontade que ele vá para o ecomuseu do corvo, isso há.

obviamente, o facto de a esposa de paulo estêvão ser a actual directora do ecomuseu do corvo, entidade primeira a solicitar essa transferência dos exemplares do boi-raça anã, não tem nada que ver para o caso. claro que não. são meras coincidências. “malhas que o império tece”, nas palavras de pessoa, entranhada rede de coincidências que permitiu que sensivelmente um ano depois de ter proferido a sua ameaça, paulo estêvão consiga o que de outra forma não conseguiu: levar a sua avante.

que o boi do corvo seja muito feliz na sua nova casa e que o restante “material etnográfico recusado pelo governo” vá pondo as suas barbas de molho.

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