MMXXI.20 - (DES)INTOLERÂNCIA
meu aluno,
escrevo-te estas palavras no ano de 2021, esperando que possam, de alguma forma, alumiar e guiar-te neste mundo de crescentes sombras, trevas e desinformação que a todos nos atinge, mas que a apenas alguns parece incomodar. devemos todos recear esta galopante vaga de desinformação, intolerância e anacronismo que, disfarçada de boas intenções, oculta lobos em peles de cordeiro de dentes arreganhados e olhos esbugalhados em busca do nosso sangue.
josé saramago, que alguns (por ignorância ou maledicência) insistem que não escrevia com pontuação, afirmou por diversas vezes não gostar do termo “tolerância” devido à carga condescendente que a palavra transporta e pelo sinal que revela em não propor mudanças intrínsecas, antes somente o politicamente correcto de “tolerar a existência do outro” ao invés da plena aceitação da diferença que a inclusão do outro acarreta.
não concordava com as palavras de tão douto escritor. no entanto, tenho de te dizer que a palavra “tolerância” deriva etimologicamente do latim tolerantia, e que designava a ideia da “constância em sofrer”, um termo que definia o grau de aceitação diante de um elemento contrário a uma regra moral, cultural, civil ou física. isto é, ser “tolerante” designava a capacidade que o ser humano tem em sofrer com a existência do outro. não o aceitar, abraçar ou integrar, mas antes o “deixar existir contra a nossa própria vontade”. dito por outras palavras, “eu tolero que existas, mas não te aceito como igual”.
eu entendia a “tolerância” mais no sentido social do termo e não na sua acepção etimológica. para mim, a palavra designava a capacidade que a nossa sociedade tem em aceitar outra pessoa ou grupo social, que pugna por uma atitude diferente daquelas que são as normas vigentes. assim, via a “tolerância” como um objectivo social da máxima importância, porquanto permitiria a inclusão plena daqueles que são “diferentes da norma” quando a norma está, quer queiramos quer não, em constante mutação.
também eu, quando adolescente rebelde, senti muitas vezes o peso da intolerância que os outros demostravam sobre o meu cabelo grande, ou sobre a minha opção de indumentária, ou ainda sobre os brincos e piercings que eu tão feliz e orgulhosamente exibia no meu dia-a-dia. cheguei a levar na cara por ter o cabelo pintado de vermelho, ou ser vítima de comentários públicos audíveis e agressivos, apenas por usar brincos.
é natural, portanto, que eu fosse sensível a esta questão do aceitar o outro diferente, do incluir o outro não normalizado e abraçá-lo, em toda a sua plenitude, como nosso irmão e semelhante. aliás, não é esse o ensinamento maior de jesus cristo, quando diz que devemos amar o nosso próximo como se de nós mesmos se tratasse? não é a tolerância pela diferença o móbil da actuação desse visionário que muitos insistem em lembrar nas palavras mas esquecer nas acções?
o mundo é muito pouco justo e a “tolerância” é apenas uma parte dessa injustiça. quero dar-te a conhecer o nome de suzy kies, uma católica intolerante, ligada ao partido do primeiro ministro canadiano justin trudeau – este, um maricas politicamente correcto – e que liderou uma comissão de apoio ao povo indígena que, em 2019, queimou quase 5 mil livros retirados das estantes das bibliotecas escolares. foram livros do tintim, do astérix, do lucky luke, da pocahontas, e muitos outros exemplos daquilo que apelidaram de “promotores da opressão sobre a visão estereotipada do povo indígena”.
este verme de mulher, que alguns apelidaram de “guardiã do conhecimento indígena”, liderou a comissão que ajudou os conselhos escolares a escolherem livros supostamente “racistas, discriminatórios e promotores de estereótipos” sobre a população indígena do canadá e, não só os retiraram das prateleiras – vedando o seu acesso pelos estudantes num acto gratuito de censura em pleno século xxi –, como também os queimaram, num ritual “purificador” da memória e honra indígenas, usando posteriormente as cinzas do acto atroz como fertilizante para árvores. a ironia da infâmia.
não consigo, meu aluno, descrever-te o asco e a indignação que deveriam acompanhar tamanho acto de intolerância, castrador da cultura, em geral, e discriminatório de autores, em particular. o caminho que devemos seguir deve ser sempre o da luz e do conhecimento – nunca o do anacronismo e do obscurantismo. por mais que o passado nos envergonhe, não o devemos ocultar nem tão pouco reescrever. orwell continua nas nossas prateleiras para nos lembrar os perigos da reescrita da história. saibamos lê-lo.
queimar livros é uma coisa da inquisição, da alemanha nazi ou da revolução cultural de mao tsé-tung, exemplos históricos de gente alimentada pelo ódio, pela incompreensão e pela intolerância sobre o outro, sobre o diferente, sobre o estranho. são apenas três exemplos que te darão pano para mangas se os quiseres aprofundar e conhecer com mais propriedade. mas posso desde já dizer-te que se nos parecem errados porque éramos nós o “outro”, deverão continuar a ser errados quando o “outro” são os outros.
a intolerância religiosa no caso charlie hebdo, que levou à morte de vários jornalistas e cartoonistas do periódico satírico francês, está presente – por vezes subtilmente – em muitos aspectos dos nossos dias. os algoritmos das redes sociais, como os do facebook, são propensos à propagação das reacções carregadas de sentimento – como o amor e o ódio – sendo que o ódio se propaga mais rapidamente que o amor.
assim é no presente, assim o foi no passado. resta-nos a vã esperança de que assim não seja no futuro que construirdes.
quando uma obra artística – literária, musical, plástica, ou dramática, para citar algumas – nos provoca uma sensação de desconforto, seja pela temática ou pela forma da sua abordagem, o caminho não deve ser nunca o da sua eliminação. muito menos sob o pretenso argumento da “purificação”. aquilo que nos incomoda deve co-existir como lembrança do que não queremos. apagá-lo é varrer o pó para debaixo do tapete, sendo certo que o tapete mais cedo ou mais tarde devolverá o incómodo.
à data deste escrito, suzy kies já não preside à infame comissão exactamente porque a sua pretensa ancestralidade indígena foi questionada. parece que, afinal de contas, esta caricatura de mulher não tem ascendência indígena e, como tal, perdeu toda e qualquer legitimidade de querer “purificar” as injustiças cometidas sobre os povos indígenas.
toma cuidado, meu aluno, porque o discurso da desinformação apela à intolerância e à ostracização. e o nosso mundo, este no qual vivemos e no qual queremos que as novas gerações vivam, só poderá viver em equilíbrio e tolerância.
saibamos derrotar o ódio. sejamos livres, iguais e fraternos.
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