MMXXI.21 - LIMITES DE IDADE
em 1853, almeida garrett publicou uma colectânea de poesia a que deu o nome de folhas caídas, quando se encontrava numa idade a que deu a simpática designação de “outono da vida”. estava naquela estação, a seguir ao fulgor do verão, onde a maturidade assenta sedimento depois da agitação tumultuosa da juventude, convencido de que se aproximava da sua idade-limite, a qual viria efectivamente a acontecer apenas um ano mais tarde, quando o escritor contava com 55 anos de idade.
em 1972, quando somava já 71 anos de idade, vitorino nemésio publicou o livro de poesia intitulado limite de idade. com a nítida sensação da velhice a cobrir-lhe o corpo e o tempo a fugir-lhe entre os dedos, o poeta discorre sobre a sua infância, com um humor negro enfeitado de termos científicos e dúvidas teológicas, na inexorável e consciente certeza de que se aproximava da sua idade-limite, a qual viria efectivamente a acontecer seis anos mais tarde, quando o escritor tinha 77 anos de idade.
nasci no ano em que vitorino morreu. foi-se ele em fevereiro, vim eu em agosto, por entre os gritos e as dores da minha mãe que, sem epidural ou cesariana, inundou com sorrisos de sofrida felicidade as fotografias que ainda hoje remanescem daquele tempo. é parte deste eterno devir em que vivemos a certeza de que atrás de tempo tempo vem, e que na morte de uns reside a vida dos outros, qual gérmen nesta cadeia de união que nos liga aos nossos antepassados e às gerações por vir.
dois exemplos da literatura a espelhar a realidade, fruto da sensibilidade humana remisturado e refeito dos cacos caóticos do nosso quotidiano, plasmado em palavras que se vão da lei da morte libertando, para que as gerações contemporâneas às das palavras escritas se deliciem, e as futuras se inspirem neste eterno repetir geracional do passado, embrenhados no caos do nosso presente, e ignorantes do futuro que é já ali, ao virar da esquina.
vem isto a propósito de polémicas recentes em torno destes conceitos de “limite” e de “idade”, ora para o “limite de idade” ora para a “idade-limite” – conceptualizações derivadas das mesmas palavras, mas significando conceitos diferentes. ao primeiro, um limite fictício imposto pela idade biológica do ser humano, ao segundo, a ideia da idade como barreira próxima do final da vida.
se é certo que ninguém sabe a sua idade-limite, também é certo que a idade biológica que se tem não é universal, uma vez que a biologia é dinâmica e diferente em todos nós, não representando, portanto, certezas absolutas. se é permitido conduzir a quem tenha 18 anos de idade, alguns há que, contando já com 30 anos de idade, são manifestamente incapazes de o fazer; se no nosso país é permitido beber álcool com 16 anos de idade, noutros países faltará ainda 5 anos para o podermos fazer, sendo certo que, em ambos os casos, a maturidade não pode nem deve ser aferida única e exclusivamente pela data inscrita no campo de nascimento do cartão de cidadão. maturidade e idade legal são conceitos distintos e nem sempre coincidentes.
recentemente, o limite de idade definido para o “acesso e exercício das atividades de artista tauromáquico e de auxiliar de espectáculo tauromáquico” passou a ser de 16 anos. não se trata de um limite proibitivo mas de uma classificação etária, que vai ao encontro da recomendação do comité das nações unidas para os direitos da criança, o qual tinha recomendado, em 2019, que portugal alterasse a legislação no sentido de ser aos 18 anos a idade mínima para assistir às touradas. não fomos tão longe, mas não ficámos onde estávamos.
esta alteração provocou uma onda de indignação histérica, levando alguns pais a ostentarem crachás nas suas fotos das redes sociais e a criarem petições, afirmando barbaridades como “a educação dos filhos aos pais pertence”, ou “o filho é meu! educo-o como quero” e outras frases-feitas que ora exaltam a elevada capacidade educativa dos progenitores – com o natural efeito de massagem egotística daí decorrente – ora defendem a liberdade de expressão e de educação que decerto a categoria de progenitor lhes confere por naturalidade.
de repente, foi como se a mera condição biológica de “pai” ou “mãe” lhes outorgasse automaticamente capacidade para um bom exercício parental. fosse isto verdade e não haveria necessidade para comissões de protecção de menores nem instituições sociais de apoio à infância.
é engraçado, senão mesmo trágico-cómico, que alguns pais se demitam das suas responsabilidades de educadores no que concerne à educação sexual e social dos seus filhos, ao acompanhamento do processo de ensino-aprendizagem dos seus educandos, atirando para a escola a tarefa de os educar. ilustres ausentes nas reuniões e cadeiras vazias no atendimento aos pais e encarregados de educação, de repente, assim do nada, como se alguém lhes espetasse uma bandarilha no cu, saltam dos sofás, na sua veemente indignação de progenitores preocupados com a alteração da classificação etária das touradas, berrando “na educação do meu filho mando eu”.
é lamentável, senão mesmo triste e deprimente, que alguns pais deleguem nas consolas e nos youtubers que tanto gostam de criticar a tarefa de embalar os seus filhos, de os entreter e acompanhar nas diversas fases das suas tenras vidas, mas que depois vociferem, em tiradas mal-escritas e falaciosas, que “o filho é meu!” e que na educação dele “mando eu! e não essa agenda progressiva de esquerda”.
esta triste e deprimente tragicomédia é também válida para os pais que impedem os seus filhos de frequentarem a disciplina de cidadania, porque discordam dos conteúdos abertamente sexuais, igualitários e democráticos, esperando depois a progressão automática dos petizes, apenas porque entendem que a sua ideologia-católico-cristã-de-gente-de-bem, a par de uns punhados de notas, lhes permite sobrepor a sua vontade à lei e à educação definida pelo estado de direito.
faz-me espécie que uma tourada tenha uma classificação etária de 12 anos quando uma peça de teatro, ou um filme, por conter (basta) um palavrão, tenha uma classificação etária de 16 anos. não vejo crachás parentais com essa preocupação. nem tão pouco petições.
faz-me confusão que os pais estejam preocupados com a saúde mental dos seus educandos, derivado das brincadeiras do squid game nos pátios das escolas, apontando o dedo acusatório à disponibilização de tais conteúdos e às tecnologias, mas não achem violentas as brincadeiras de touradas nos mesmos pátios nem hipócrita o patrocínio de bebidas alcoólicas às equipas nacionais de futebol.
lá está, o problema deve ser meu, que estou a chegar ao outono da minha vida, quiçá diariamente próximo da minha idade-limite, e não consigo compreender estas incongruências dos limites de idade.
Comentários
Enviar um comentário