MMXXII.04 - SOLIDARIEDADE INSTAGRAMÁVEL

 

charlie hebdo é um jornal satírico francês que, a 7 de janeiro de 2015, ficou internacionalmente conhecido por ter sido alvo de um ataque terrorista, de motivação religiosa e intolerante, deixando como rasto a morte doze vidas humanas, das quais cinco dos cartoonistas que traziam à estampa aquele semanário já há muito envolto em polémica. 

em 2006, o jornal havia sido alvo de um processo judicial encetado por entidades islâmicas, à conta das caricaturas satíricas de Maomé que havia publicado; em 2011, fora alvo de um incêndio provocado por uma explosão de uma bomba, e o site do jornal fora também vítima de pirataria; juntando as ameaças telefónicas, os e-mails e as cartas de ódio, entre outras pequenas mostras de que havia um grupo de gente inquieta para fazer a folha ao jornal, a partir de 2012, a polícia francesa passou a patrulhar a sede do charlie hebdo para protegê-la contra possíveis ataques islâmicos. 

poder-se-á dizer que a conjugação de factores apontava para uma iminente desgraça. e o impensável aconteceu: vários “ofendidos” religiosos, sob o manto opaco da religião, gritando “allahu akbar” e outras tretas de mambojambo comuns a estes grupos de fiéis que tendem a achar que há coisas sagradas com as quais não se brinca,  armados com kalashikovs e ódio religioso até aos dentes, entraram nas instalações do charlie hebdo e desataram a matar aqueles que tanto odiavam. 

o ódio gera ódio, a violência gera violência, e os clichés nunca são demasiados para nos esquecermos. se é certo que as publicações do charlie hebdo são provocadoras, de um humor difícil para muitos, nos quais me incluo porque nunca fui grande fã, o certo é que a liberdade de expressão permite que façam humor com o que quiserem, e esta liberdade deve ser defendida intransigentemente.

nos tempos a seguir ao massacre, foram imensas as mostras de solidariedade, como a grande manifestação de 11 de janeiro de 2015, que juntou cerca de 3 milhões de pessoas em toda a frança, incluindo mais de 40 líderes mundiais, para homenagear as vítimas do massacre. “je suis charlie” uniu o mundo em torno de uma ideia: a da liberdade de expressão; e de uma imagem instagramável: as letras brancas da liberdade contra o fundo negro da intolerância. 

a ironia de tudo isto é que o charlie hebdo, quando regressou à sua actividade normal de sátira, carregado daquele humor negro que o caracteriza, publicou dois números que lhe valeram a perda de grande parte dos solidários instagram do “je suis charlie”. 

o primeiro foi no mês de setembro do mesmo ano, sensivelmente oito meses depois dos ataques, quando publicaram uma capa a gozar com os migrantes que morriam a tentar atravessar o mediterrâneo e a entrar na europa, materializada no menino alan kurdi, de cinco anos, cujo corpo deu à costa numa praia turca e cuja imagem chocou o mundo, tornando-se símbolo daquela tragédia.

o segundo foi em agosto do ano seguinte, quando gozaram com o tremor de terra em itália que devastou várias localidades e no qual morreram 299 pessoas, sendo que só na comuna de amatrice foram a enterrar 224 pessoas, publicando uma capa a gozar com o facto de já só ser necessário cozinhar a pasta, uma vez que a carne moída (entenda-se, gente morta nos escombros da tragédia) já lá estava. 

e assim, de repente, os solidários instagram deixaram de ser charlie. ao fazer aquilo que sempre fez, e que motivara o ataque de ódio islâmico em defesa do sagrado maomé, afinal, para algumas pessoas, o jornal também “se punha a jeito” e “gozava com coisas de que não se goza”, fazendo com que fosse “difícil defender aquela gente”. 

outras causas mereceram a nossa solidariedade instagramável em forma de post e de partilha, moldura temporária que se desvanece ao fim do tempo definido, que nem as mensagens autodestrutivas da “missão impossível”. uma solidariedade falsa, egoísta e disfarçada de preocupação, deixando pouca ou nenhuma consequência nas acções ou nos pensamentos dos solidários e que é motivada, no fundo, por uma necessidade de se pertencer a uma onda maior do que cada um de nós sem nada mais do que esta necessidade de seguir uma tendência.

a mais recente mostra de solidariedade instagramável foi com rayan oram, a criança marroquina de 5 anos que caiu num poço aberto de 32 metros de profundidade, na vila de ighran, província de chefchaouen. durante quatro dias, a comunicação social nacional e internacional acompanhou de perto ao longe as manobras de salvamento, os especialistas, os opinadores, as tecnologias envolvidas, os prognósticos, os chouriços e a palha para fazer render as reportagens, os especiais, os directos e os painéis de discussão. 

o rapaz foi resgatado sem vida e o desfecho não foi o esperado. a solidariedade desvaneceu, como uma story do instagram, efémera e sem rasto. 

casos semelhantes, sem cobertura mediática internacional, temos, assim de relance, e só na índia: em outubro de 2008, no distrito de theni, uma criança de três anos caiu num poço similar e morreu; em fevereiro de 2009, um menino de seis anos caiu num poço com 137 metros de profundidade e também morreu; em agosto de 2009, k gobikumar caiu num poço de 5 metros e meio e morreu; em setembro de 2011, no distrito de tiruvannamalai, um menino de quatro anos caiu num poço de 61 metros de profundidade, e morreu; em abril de 2013, no distrito de karur, uma menina de sete anos de idade caiu num poço de 275 metros de profundidade e morreu; em abril de 2014, no distrito de villupuram, r madhumitha caiu num poço aberto e morreu, e no distrito de tiruvannamalai, no mesmo mês, uma criança de 18 meses caiu num poço aberto e morreu; em outubro de 2019, sujith wilson, de dois anos e meio, no estado de tamil nadu, caiu num poço e morreu; em 2020, um menino de 3 anos de idade, em telengana, caiu num poço de cerca de 46 metros de profundidade e também morreu.

com cobertura mediática: em janeiro de 2019, em espanha, na cidade de málaga, julen roselló, de dois anos de idade, caiu num poço e morreu; em 1981, alfredo rampi, de alcunha alfredino, de 6 anos de idade, caiu num poço de 80 metros de profundidade, em vermicino, itália, e morreu. em 1949, nos estados unidos, kathy fiscus, de 3 anos de idade, caiu num poço de 30 metros de profundidade e morreu. 

é esta arbitrariedade nas causas que são – ou não – instagramáveis, importantes e televisionáveis que me causa espécie, alguma tristeza e descrença na humanidade.

por cá, temos um autarca de pedrógão grande que foi condenado a 7 anos de prisão efectiva por ter cometido crimes de peculato e favorecimentos a amigos e conhecidos, usando o dinheiro da solidariedade social para com as vítimas de tamanha tragédia, para a reconstrução das casas perdidas nos incêndios. 

haja estômago.

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