MMXXII.19 - ANA LÚCIA - OU O ACASO DO CERTO

 


ana lúcia almeida foi minha professora de português b no décimo segundo ano por mero acaso. mas o efeito vero deste acaso marcou a minha vida de uma forma indelével, tornando-se parte daquele que sou hoje.

 

no ano lectivo de 1995/1996, estava matriculado numa turma do agrupamento de ciências e o meu percurso pós-secundário estava mais ou menos definido na minha cabeça: em traços gerais, cursar biologia ou geologia em ponta delgada. bem bom. os meus pais não tinham muito dinheiro, portanto o meu alcance de possibilidades era preferencialmente açoriano.

 

por ter tido a extrema felicidade de ter o professor eduardo almeida como professor de geologia – cujo impacto terei oportunidade de referir noutro texto – estava, na altura, mais inclinado para esta disciplina e não tanto para biologia, dado que sempre tive dificuldades com o mundo das plantas. particularmente as angiospérmicas e as gimnospérmicas, que tanta dor de cabeça me causaram sob o olhar atento da professora de biologia, recentemente falecida.

 

uma vez que a professora titular de português b tinha estado ausente durante a maior parte do primeiro período, por razões de saúde, o conselho executivo – na altura, directivo – encontrou na ana lúcia almeida a solução para garantir que todos nós tínhamos o mínimo de conhecimentos necessários para enfrentarmos o temido exame nacional, dali a pouco tempo. afinal, era o primeiro ano de implementação dos exames de acesso ao ensino superior e ninguém queria fazer má figura.

 

portanto, mais ou menos a meio do segundo período, comecei a ter aulas de português b com a professora ana lúcia almeida, em velocidade acelerada para compensar o tempo perdido. o impacto que a ana lúcia teve na minha turma e, em última instância, em mim, foi estrondoso.

 

isso deveu-se ao facto de que a ana lúcia almeida não é apenas uma professora de português. é muito mais do que uma função instrutiva em contexto de sala de aula e vai muito para além do mero e profissional cumprimento de uma profissão. 

 

ana lúcia almeida é uma daquelas raras pessoas que têm sempre algo a dar e a ensinar – não apenas na dimensão académica, também no âmbito do ser. é daquelas pessoas que nos ajudam a aprender, que nos ajudam a crescer e que promovem o desabrochar de jovens enquanto futuro adultos – acima de tudo válidos e prontos para enfrentar com firmeza os desafios que a vida, com toda a naturalidade, nos preparará.

 

para a ana lúcia, a língua portuguesa não é uma matéria a ser percebida ou decorada – é um estado de alma a ser vivido todos os dias. é uma natural necessidade, visceral e inadiável, na qual o homem se revê, conhecendo, aprendendo e evoluindo, numa eterna espiral de porvir, onde a arte em geral, e a literatura em particular, fazem parte do tecido muscular do ser humano e são, portanto, indissociáveis da sua forma física. 

 

tratava os autores com proximidade, carinho e compreensão, como se os conhecesse pessoalmente; e incutia em todos nós, com o vibrante brilho do seu olhar, um prazer indizível na declamação da palavra escrita, deleite de todos quantos tiveram a felicidade de a ouvir declamar. ou leccionar, que é a mesma coisa, em ana lúcia. 

 

descrevia as características da escrita não como um esquema sistemático com chavetas e setas informativas, mas como naturais extensões do pensamento dos autores, ensinando-nos a descortinar, camada atrás de camada, verso sobre estrofe e palavra sobre parágrafo, os traços das personalidades que se escondiam por detrás daquelas paredes densas de texto. 

 

ensinou-me a olhar para a heteronímia de fernando pessoa não como uma tabela engavetada de características a decorar, mas como um mapa mental de personalidades distintas, mais propensas – cada uma delas – a determinados traços identificáveis na poesia: acima de tudo, como manifestações líricas de estados de alma verdadeiros.

 

ao fim e ao cabo, graças à ana lúcia almeida, acabei por redescobrir o prazer da literatura e, mais tarde, com outras sugestões de amigos e namorada, fazer mais dois exames autopropostos e acabar por cursar línguas e literaturas modernas na universidade dos açores.

 

em 2008, a ana lúcia almeida foi destacada para o cargo de coordenadora do serviço educativo do museu de angra do heroísmo, cargo que exerceu com dedicação e profissionalismo únicos, desenvolvendo um trabalho de formação em diferentes áreas das artes junto das crianças, jovens e alunos das escolas e turmas que com o museu colaboraram. 

 

um trabalho que reconheço como utente mas também como pai e encarregado de educação, porquanto muitas foram as vezes que os meus filhos usufruíram do maravilhoso trabalho do serviço educativo do museu de angra, coordenado pela ana lúcia almeida.

 

um trabalho que mereceu o reconhecimento da “apom – associação portuguesa de museologia”, em 2013, com a atribuição do prémio “melhor serviço educativo” – uma distinção no seio de todos os museus portugueses que, não fosse o trabalho da ana lúcia, teria sido entregue a outro museu que não o de angra. 

 

em 2022, ao fim de catorze anos volvidos sobre o destacamento inicial, a direcção regional da educação e administração educativa decidiu não o renovar, fazendo com que ana lúcia almeida tenha de regressar à sua escola de origem e abandonar o serviço educativo do museu, da responsabilidade da agora direcção regional dos assuntos culturais.

 

para ajudar a colmatar as dificuldades que muitas escolas sentem devido à falta de docentes, a tutela da educação decidiu reduzir projectos, equipas e destacamentos, fazendo assim com que os docentes destacados regressem às suas escolas de origem e preencham horários em falta. é uma triste realidade nos açores, mas também o é no continente português e em muitos outros países europeus.

 

no caso da ana lúcia, ganha sem dúvida a escola secundária jerónimo emiliano de andrade. perde dolorosamente o serviço educativo do museu de angra.

 

ninguém é insubstituível, todos nós o sabemos. mas também sabemos que há pessoas mais talhadas do que outras para determinadas funções.

 

a de coordenadora do serviço educativo do museu de angra do heroísmo era a função da ana lúcia almeida.

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