MMXXII.20 - (DES)ENGANOS DA EDUCAÇÃO
um engano é o de que o problema da escassez de docentes nas nossas escolas – regionais e nacionais – se resolve com dinheiro. não se trata apenas de uma questão monetária. décadas de desinvestimento na educação, em sucessivos governos – ps, psd, cds –, tal como acontece presentemente na área da saúde, contribuíram para chegarmos ao estado actual das coisas. o desinvestimento não foi apenas financeiro e de recursos humanos. foi também social: o desinvestimento que a sociedade fez em determinados funções, como a docência, em detrimento de investimentos noutras.
portugal elevou uma geração pós-25-de-abril de licenciados ao estatuto de “doutores”, correndo freneticamente contra o atraso resultante de quarenta anos de estado novo e falta de igualdade no acesso à educação, fazendo com que todos os pais quisessem que os seus filhos fossem, de alguma forma, licenciados e tivessem, automaticamente, um emprego condizente. não importava a média, a competência ou a capacidade – era uma conquista tácita: ao canudo equivaleria obrigatoriamente o emprego correspondente.
de repente, as letras e as humanidades deixaram de ter importância, sendo rapidamente substituídas pelos novos deuses das engenharias, das informáticas, das novas tendências da sociedade, criando esta ideia peregrina – e contra a qual nos devemos colocar – de que as universidades são fábricas de especialistas, orientadas e financiadas pelas oscilações das bolsas de mercado, pelas necessidades das empresas, e pela orientação enviesada de que “tempo é dinheiro”.
a verdade é que, da mesma forma que precisamos de cursos profissionais e de ofertas vocacionais orientadas para profissões técnicas e de entrada directa no mercado de trabalho, também precisamos de licenciaturas e ofertas de ensino superior para áreas que, podendo não ser as mais necessitadas em determinadas alturas particulares, são sempre necessárias e haverá sempre necessidade para elas. basta olharmos à nossa volta na educação e na saúde.
afirmar que certas áreas de formação não têm qualquer interesse numa determinada sociedade é ser obtuso e tendencioso. não podemos ir todos para o mesmo lado, é certo, sob pena de saturação da oferta, mas devemos ter variados lados para seguir, sob pena de andarmos sempre a apagar fogos e a tapar buracos. a autorização de abertura de cursos nas universidades não deveria ser tabelada pelo mercado de trabalho.
o partido socialista tem na figura da maria de lurdes rodrigues a manifestação desse desinvestimento na educação, ao passo que o partido social democrata tem na figura de nuno crato, para além do desinvestimento, a manifestação prática de uma determinada elite saudosista que teima em ressuscitar as práticas da “dita dura”, através dos famosos exames da quarta classe.
aqui, pelas nossas ilhas, na altura da campanha eleitoral, em debate televisivo com o anterior presidente do governo dos açores, o agora presidente afirmou que, a sê-lo, resolveria de uma vez por toda o problema da instabilidade da classe docente, dotando todas as escolas dos açores dos recursos humanos necessários, nem que para isso tivesse que contratar mais professores e auxiliares do que o estritamente necessário. o discurso do “não pouparemos esforços” e a certeza de que o dinheiro resolve o problema.
infelizmente, não resolve. tanto não resolve que este é o segundo ano lectivo seguinte que apresenta uma gritante falta de docentes e de assistentes operacionais nas escolas, apesar de a secretária da educação ter feito notícia no final de agosto de que haviam preenchido todos os horários disponíveis, havendo, portanto, 100% de colocações de professores. a verdade é que, poucos dias depois, a escola mouzinho da silveira anunciava na bep açores 5 horários para contratação, e muitas outras escolas se seguiram, até ao arranque do ano lectivo com centenas de horários por atribuir.
foi um fait-divers de final de silly season, para dar uma notícia positiva na área da educação (se bem que efémera) e começar a sacudir o pó ao início deste ano lectivo, que arranca com a novidade dos manuais digitais e a sua implementação gradual e generalizada nos açores. um projecto iniciado pelo partido socialista no continente, entretanto disseminado para os açores e madeira.
sou um velho do restelo moderado, sempre que me tentam vender uma tecnologia topo de gama, à frente de todos os outros. prefiro alguma cautela, perceber a implementação da tecnologia, e de que forma a sociedade a ela se adapta, do que saltar de cabeça numa adopção completa, sem alternativas, à laia do famoso leap of faith do indiana jones, no final da última cruzada.
não me esqueço do laserdisc, do minidisc, do videocd, do divx, dos discos iomega zip, apenas para nomear uns poucos, que, à semelhança de uma miríade de outras tecnologias, vaticinavam, com a certeza da inevitabilidade, virem revolucionar o sistema e substituir os meios anteriores, e avisavam que quem não embarcasse no comboio arrepender-se-ia para o resto da sua vida.
o certo é que todas essas maravilhas revolucionárias acabaram os seus dias a ganhar pó nas prateleiras das arrecadações e nos sótãos do esquecimento, ultrapassadas por outras, e resgatadas do olvido completo em artigos de divulgação ao estilo “10 tecnologias que falharam no tempo”, ou “conheça as inovações do passado que não vingaram”, entre outros títulos semelhantes, para nosso scroll e entretenimento.
como tal, vejo com cepticismo um caminho que opte pela completa substituição de manuais digitais em detrimento de manuais físicos. vejo com preocupação qualquer caminho que contribua para o crescimento e controlo dos grupos editoriais sobre os conteúdos lectivos, um caminho que reduz os professores a acompanhantes do manual e os alunos a seguidores dos acompanhantes.
o caminho que o governo dos açores estava a percorrer era um de autonomia das escolas, de projecto escolar, de progressivo afastamento da lógica do “manual” e aproximação da lógica da aprendizagem com múltiplas fontes, digitais, livres e adaptáveis às variadíssimas realidades formativas dos diversos percursos oferecidos pelas nossas escolas.
projectos como a reda – recursos educativos digitais abertos, ou o projecto topa – traz o teu próprio aparelho, são exemplos deste caminho, assim como o sge – sistema de gestão escolar que, pese embora as dores naturais de tudo o que nasce, é presentemente caso único no país, e um exemplo de boas práticas no que à digitalização e transição digital diz respeito ao nível da educação.
ao optar por um caminho que é, na prática, a aquisição de licenças de utilização da plataforma “escola virtual” e a sua disseminação por todas as escolas dos açores, com recurso a dispositivos móveis, o governo dos açores entrega de mão beijada os dados de gestão escolar dos açores à porto editora.
macacos me mordam se daqui a pouco tempo não temos todas as escolas dos açores a adoptar somente manuais do grupo porto editora.
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