mmxxi.03 - ofensas modernas

 

diz-me o dicionário que o antónimo de anacrónico é moderno. enquanto aquele, por se encontrar fora do seu tempo, é obsoleto, este encontra-se dentro do seu tempo, sendo contemporâneo. moderno, portanto. se o anterior morte da bezerra se deteve nas ofensas anacrónicas, este que agora morre será pelas considerações sobre as ofensas actuais, motivadas por situações que ocorrem dentro do tempo da ofensa que geram. 

mais do que assistirmos a um aumento da sensibilidade à ofensa, dado que uma publicação ofensiva geraria semelhante grau de ofensa noutros tempos, tivessem existido os mecanismos de partilha dos nossos dias, vivemos tempos em que as ofensas sentida e provocada são mais facilmente expressas, partilhadas, lidas e, naturalmente, comentadas. 

se dantes as ofensas ficavam confinadas às queixas nos círculos de amigos e conhecidos mais próximos, ora em conversas em casa, ora em encontros de rua, hoje as ofensas sentidas exprimem-se nos mesmos locais onde os motivos das ofensas são gerados, sob a forma de reacções, comentários, denúncias, bloqueios, e o diabo a quatro.

seja qual for a forma ou intensidade que tome a ofensa sentida, o certo é que as redes sociais permitem uma directa interacção entre quem provoca a ofensa e quem se sente ofendido, estilhaçando tempos de resposta da imprensa escrita, barreiras geográficas e sociais, com consequências dentro e fora do espaço digital onde ocorrem.

mesmo que inconsciente, um tweet ofensivo de uma figura pública a uma determinada comunidade pode ditar o fim de uma carreira ou, pelo menos, o abrandamento do seu sucesso. isto quando as ofensas não são intencionais. porque também as há, inocentes.

mas também as há conscientes e maldosas. a bastonária da ordem dos enfermeiros acusou a presidente da câmara de portimão de ter sido indevidamente vacinada contra a covid-19, passando à frente de quem verdadeiramente necessitava. parece incrível, mas a bastonária escreveu na sua publicação do facebook: “a gorda fura filas. malvada a hora em que nasci magra”.

não contente com a gorda, acusou falsamente um secretário de estado e a sua esposa de terem pegado “na família e nuns amigos socialistas e toca de fazer de fura filas e chicos espertos a tomar a vacina”. depois de desmentida, ainda acrescentou mais veneno e toxicidade à situação, afirmando que “o critério neste país para se ter um alto cargo público, família”.

não contente com a gorda e o secretário de estado, fez um verdadeiro fogo-de-artifício ao chamar, na sua página de facebook, o jornalista daniel oliveira de “esterco”, acusando-o de ser “defensor de fura filas” e propenso a “vigarices com graus académicos”, uma vez que ela era mestre, e terminando com a cereja no topo do bolo que foram os “cumprimentos ao teu pai” – o poeta herberto helder, considerado por muitos como o “maior poeta português da segunda metade do século xx” e falecido há cinco anos. coisa pouca, portanto.

não é possível não reparar na necessidade de chamar atenção a si através do “magra”, traço narcisista que pode ser observado nas suas selfies de glorificação corporal ao longo do facebook, por contraponto à gorda de portimão; também é notória a inveja de não ter nascido numa outra família que não numa com o desprestigiado apelido do papa-bolos-rei-cavaco; e, por fim, de se notar a necessidade de afirmação intelectual – porque dúvidas subjazem ao se ler as suas publicações – através da acusação do daniel “vigarista” e a chamada de atenção para o seu mestrado.

a bastonária da ordem dos enfermeiros estilhaça uma barreira de civilidade, degradando o espaço público e, no fundo, acaba por confirmar ser precisamente aquilo que deu a entender quando foi dar um beijinho ao seu amigo ventura na altura da segunda convenção do partido dos cheganos.

a mulher usa um tipo de linguagem insultuosa, maledicente, provocadora, sem nível e incendiária dos piores impulsos humanos, como forma de instigar os seus cerca de dezanove mil apoiantes, num universo de mais de setenta mil enfermeiros. felizmente um grupo de enfermeiros já apresentou uma participação ao conselho jurisdicional da ordem, tendo em vista a sua expulsão.

nos açores, os insultos, as falsas suspeitas e os discursos envenenados também os há nas redes sociais. mas como ainda é muito recente o assalto ao poder dos três estarolas, afinal ainda só passaram três meses, as ofensas e suas defesas têm sido muito orientadas para o cenário político. 

umas são ofensas de família – tanto acusaram, tanto apontaram o dedo, e agora, de um momento para o outro, bem prega frei tomás, há a ofensa porque os outros fizeram parecido; outras são ofensas de políticas – tanto exigiram, tanto disseram ser diferentes, mas agora há a ofensa porque a herança é pesada e o programa está para vir; outras há que são pessoais – tanto mal escreveram e tantos acusaram sem pudor, que agora, de um momento para o outro, nada pode ser dito que aqui d’el estevão! que há a ofensa do falso testemunho e da honra e de todas aquelas coisas que ficam bem invocar sempre que nos queremos vitimizar, dizendo que os outros estão ressabiados. 

ou ofendidos, que é parecido.

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