MMXXII.01 - MAIS UMA VOLTA

 

reza a bíblia, no seu antigo testamento, que a primeira cidade na terra prometida que os israelitas encontraram, depois de cruzarem o rio jordão e de andarem perdidos no deserto durante quarenta anos, foi a cidade de jericó. essa cidade palestiniana era rodeada por muros altos e fortes e a única forma que os israelitas tiveram de a tomar foi através da ajuda divina.

seguindo as orientações de deus, josué e os seus amigos cercaram as muralhas da cidade durante seis dias, dando uma volta completa às suas muralhas em cada dia que passava. ao sétimo dia, à sétima volta, ao soar das trompetas dos chifres de carneiro, todos os intervenientes gritaram a plenos pulmões e as muralhas miraculosamente caíram, apenas com as vozes e gritos de josué e seus companheiros.

depois da derrota, todos os habitantes de jericó foram chacinados, exceptuando a prostituta raabe, que havia sido uma boa aliada para os israelitas, mas uma grande traidora para os palestinianos, porquanto albergara em sua casa uns espiões que josué havia enviado durante o cerco, fazendo assim com que lhe poupassem a vida em troca da vida de todos os restantes habitantes da cidade.

como todas as histórias que se rezam, a história da queda de jericó pode ser vista de, pelo menos, duas formas. do ponto de vista dos israelitas, como um enorme caso de sucesso; do ponto de vista dos palestinianos, como uma desgraça completa – não só pela chacina de homens, mulheres e crianças, como pela permissividade social ante a prostituta que, no fim de contas, só serviu para trair aqueles que durante tanto tempo a toleraram, e ainda pela praga que josué lançou à cidade em escombros, amaldiçoando quem ousasse reconstrui-la. 

este episódio da batalha de jericó serviu de inspiração a tiago guillul, músico português, que escreveu a canção “são sete voltas p’ra muralha cair”, incluída no álbum “v”, lançado em 2010, e que conta com a participação de joaquim albergaria, músico dos “the vicious five”, “caveira” e “paus”. 

a música, construída sobre um pormenor da tarola de uma canção de uma banda evangélica sueca, segue, verso atrás de verso, o ritmo de cada conjunto de quadras que alerta para “mais uma volta para a muralha cair”, até ao clímax final em que toda a gente grita e a muralha, tal como reza a história da bíblia, cai.

a música de guillul é, acima de tudo, uma metáfora para a voz e a vontade populares que são capazes de mudança, até fazer cair muros de pedra. romântica, claro está, cheia de boa intenção quanto ao poder que a fé, a vontade e a força do povo têm quanto aos grandes, aos poderosos, aos opressores. 

versos como “esta é uma guerra que se ganha de rodeios/no alto da muralha eles até podem rir”, “contra os tijolos marcham as canções/parecemos tolos mas temos os refrões”, “um agrupamento que ninguém atura/o som não entretém, o som só desmura/não é para embalar é mesmo p’ra demolir” enchem-nos os ouvidos de esperança no que será melhor depois da mudança. 

a música é inteligentemente criada em sete quadras, em que no final de cada quadra se refere, “uma volta”, “duas voltas”, até chegarmos à quadra final da “são sete voltas p’ra muralha cair” e ouvir tiago guillul e joaquim albergaria gritarem: “é agora ou nunca encham os pulmões/é mesmo p’ra gritar sem contemplações/de jericó nem uma pedra vai resistir/são sete voltas p’ra muralha cair”. 

uma canção de guerra, motivadora e, ao mesmo tempo, enganadora, não só pela forma como os israelitas tomaram conta da cidade e dos seus despojos, mas também pelo prémio dado à prostituta, uma vez que, como guillul diz, a vitória não foi geoestratégica, mas consequência da alcofa, da perdição pela carne humana: “não é a geoestratégia que diz/mas a hospitalidade da meretriz/prendam os clientes, deixem a pobre sair/três voltas dadas p’ra muralha cair”.

por aqui, pelo ano de 2022 do século xxi, vamos a mais uma volta ao sol. não às paredes de jericó, mas aos 365 dias da translação da terra ao sol, para mais um ano a quem tem a felicidade e o privilégio de estar vivo, mais um ano de saudade e afastamento de quem fica sobre quem foi. 

esta volta ao sol ficará marcada pelas eleições do próximo dia 30 de janeiro. ao contrário do que aconteceu com jericó, penso que a população portuguesa não espera revoluções nem grandes quedas de muros. pelo contrário, dadas as circunstâncias mais recentes relativamente à pandemia do covid-19, à queda da geringonça e ao papel do discurso das direitas radicais, das fake news e da desinformação, parece-me que estas eleições são a oportunidade de se recentrar o discurso do bom senso, da união central e de se abandonar, de uma vez por todas, o discurso do “orgulhosamente só” e das “maiorias absolutas”.

não gosto de rui rio pela mesma razão que não gosto de políticos culturalmente ignorantes. há que desconfiar sempre de pessoas que não lêem livros, não ouvem música ou não vêem cinema. podem ser grandes crânios nas folhas de excel ou nas contabilidades, podem ser grandes especialistas num ou noutro ponto da matéria, mas regra geral são fracas pessoas e incompletas personalidades. acima de tudo, incompletas. 

apesar de ser um deserto cultural, talvez maior ainda do que aquele onde os israelitas se perderam, o certo é que rui rio tem vindo a bater em duas teclas que me parecem ajuizadas. 

por um lado, já o disse várias vezes que prefere dar a mão ao partido socialista do que aos partidos que estão à direita do partido social-democrata. provou-o ao não dar a mão ao moribundo cds-pp em coligações pré-eleitorais (excepto nos açores transformistas), e tem insistido num discurso conciliador, avisado que está das geringonças, e disponível para um entendimento ao centro.

por outro lado, já afirmou várias vezes que não se aproximará do chega nem com ele fará qualquer entendimento pós-eleitoral. disse-o em plena campanha interna e disse-o já agora, em campanha para as legislativas, que não está para se juntar a andré ventura – por mais que este se aproxime e tente cavalgar a onda da disponibilidade. 

as pessoas fartam-se de experimentalismos e de hegemonias partidárias. ou o partido socialista entende esta realidade social e política, ou arrisca-se a perder – nacional e regionalmente – eleição atrás de eleição porque prefere insistir na maioria absoluta, em nome de uma tal estabilidade que não existe, num mundo instável como aquele em que nos encontramos. 

sejamos ajuizados e não confiemos nas meretrizes. apesar de serem minorias que necessitam de alguma protecção social, podem também ser as traidoras da nossa história de jericó. 

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