MMXXII.02 - A EXCEPÇÃO À REGRA DA LEI

 

o dito “a excepção confirma a regra” deriva de um princípio legal da república romana, inicialmente proposto por cícero, expresso na expressão latina exceptio probat regulam in casibus non exceptis, ou, em latim vertido português, qualquer coisa como: “a excepção confirma a regra nos casos não excepcionados”. em sentido genérico, quer isto dizer que o facto de existir uma excepção implica, a montante, a existência de uma regra prévia que é excepcionada.

se num estabelecimento comercial lermos o aviso “estamos encerrados ao domingo”, tal permite-nos inferir, naturalmente, que a regra é o estabelecimento estar aberto nos restantes dias da semana, exceptuando ao domingo, dia em que encerra; ou, noutro exemplo, se lermos o aviso que declara “proibido estacionar neste local em dias de semana”, tal permite-nos deduzir, com propriedade, que aos fins-de-semana estamos autorizados a estacionar nesse local.

no campo da ciência, mais do que explicar o desvio a uma norma em circunstâncias particulares ou justificar uma realidade que foge a uma dada normalidade, a existência de excepções estabelece, per se, a linha divisória entre aquilo que é entendido como uma “lei” e aquilo que é percepcionado como uma “regra” de formulação humana. ou seja, se é uma regra, admite excepções; se é uma “lei”, não admite desvios à regra. 

tome-se como exemplo a seguinte regra relativa à espécie de mamífero carnívoro do género panthera e da família felidae: “os leões têm juba, as leoas não”. tal regra permite-nos assumir, agora e no futuro, que todos os indivíduos dessa espécie que têm juba são leões e os que não a têm são leoas, sendo a juba um dos elementos distintivos entre ambos os sexos. se nascer um leão que, por alguma anomalia genética, não desenvolve a juba que é suposto, e não se tratando de uma leoa, estaremos na presença precisamente de uma excepção que determina que a afirmação inicial é uma regra e não uma lei. se fosse uma lei, não permitiria que existisse um leão sem juba.

quando se considera a lei da gravitação universal de newton, podemos afirmar que, no nosso planeta, a atracção gravitacional da terra confere peso aos objectos e faz com que os mesmos caiam ao chão quando soltos. sem excepção. ou seja, é uma lei, e não uma regra, porque o seu postulado não admite quaisquer excepções: todos os corpos quando soltos são atraídos pela força gravitacional da terra para o chão, caindo na sua direcção. não existem corpos no planeta que não sofram dessa lei. se existissem, tratar-se-ia de uma regra gravitacional e não de uma lei.

ao contrário da ciência, a justiça, feita pelos homens e não pela natureza, admite a existência de leis com excepções. aliás, muitas são as vezes em que temos a sensação de que as leis humanas foram feitas precisamente para serem excepcionadas, tornando-as, naturalmente, mais próximas do conceito da regra científica do que da lei, à qual se deve obedecer sem excepção. 

claro está que isto não é difícil de entender, sendo o homem o ser transigente que tanto orgulho tem em o ser. basta assim, de relance, lembrarmo-nos das leis de deus que tantos – e tantas – tão veementemente pregam como garantes de seriedade e de integridade e que, no recato dos olhares alheios, tão depressa as quebram sem medo da punição divina omnipresente e omnisciente – assim o dizem. 

mas para lá das considerações generalistas sobre a natureza humana, falível e pecaminosa, existem duas excepções muito recentes que têm sido motivo de grande discussão: uma mais internacional, ali para os lados da austrália; a outra mais nacional, ali para os lados de são bento e ainda não está decidida.

a primeira tem que ver com a excepção médica que permitiu a novak djokovic, tenista profissional anti-vacinas, não ser vacinado contra a covid-19 e continuar a fazer a sua vida normal como se estivesse, tendo participado, sem máscara, claro está, que o homem é corajoso e não deve nada a ninguém, num evento do serviço de correios da sérvia um dia depois de ter testado positivo e, pouco depois, ter dado uma entrevista presencial ao jornal l’equipe, em belgrado, quando deveria estar quietinho, em resguardo e em isolamento, em cumprimento do período obrigatório de 14 dias de quarentena para os infectados. 

não satisfeito com estas duas pérolas de incumprimento, o número um do ranking do ténis mundial decidiu viajar para participar no open da austrália de 2022, tendo, para isso, prestado informações falsas no preenchimento da declaração de entrada no país. apesar de uma primeira decisão judicial favorável à sua libertação do centro de confinamento em melbourne, novak arrisca-se a uma nova decisão de cancelamento do visto e eventual deportação. 

a primeira-ministra sérvia mandou abrir uma investigação aos alegados incumprimentos, avisando que, a confirmar-se o desrespeito pelas normas de combate à pandemia, o tenista incorre numa pena que pode ir de uma multa a uma pena de prisão. como nenhum tribunal o condenará a uma pena efectiva de prisão, ficam as ameaças a pairar no ar para parecer bem por parte das autoridades sérvias que, se sentimento têm para com novak é de uma tremenda gratidão e admiração pelo caminho trilhado pelo desportista.

a segunda excepção tem que ver com a aparente solução que será implementada em portugal para garantir que as pessoas que se encontram em confinamento possam exercer o seu direito de voto nas próximas eleições legislativas portuguesas. em cima da mesa a possibilidade de se suspender o confinamento temporariamente, para que o direito ao voto não seja beliscado – independentemente de quem estiver confinado queira ou tenha manifestado intenção de voto. 

pese embora a situação pandémica em que nos encontramos não possa ser comparável à do período pré-vacina-covid-19, não deixa de ser um tanto ou quanto irónico que o direito ao voto seja tão sagrado que coloca em cima da mesa a possibilidade de suspensão de confinamento, apesar da galopante e vergonhosa abstenção que, eleição após eleição, tem aberto os noticiários da noite.

afinal, o direito ao voto é mais importante que a liberdade de livre circulação, de ajuntamento familiar, de celebração de matrimónio ou do luto dos velórios e dos funerais e não sabíamos. de todas as restrições nestes últimos anos, as que mais que custaram a engolir foram precisamente os avisos sobre as limitações nas celebrações familiares – como no natal – e, acima de tudo, a não possibilidade de presença nas derradeiras despedidas de entes queridos falecidos. 

são estas excepções à regra da lei que nos fazem sentir humanos, todos iguais, mas uns mais iguais do que outros.

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